Teorias Malucas Com Sean O’Hagan

Multi-instrumentista e produtor irlandês é um gênio da reinterpretação musical

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O bom da vida é poder pensar em teorias malucas, certo? Se você discorda, ainda há de mudar de ideia e elaborar as suas, sobre os temas que mais lhe interessam. No meu caso, a música é o objeto central. Além dela, a História e os fatos. Com estes elementos, consigo afirmar, com um surpreendentemente baixo índice de erros ou extravagâncias, que o mundo viveu uma espécie de apogeu tecnológico-otimista-capitalista entre o fim dos anos 1950 e o início dos anos 1960, respingando até o fim dos anos 1970. E este período, gente, tem uma trilha sonora. Veja, não é simplesmente falar que o Rock nasceu em fins dos anos 1950, que a Bossa Nova era o ritmo de um Brasil ideal, que o Jazz poderia ter sido o ritmo dos jovens nos anos 1960, nada disso. Há algo em comum a estes gêneros todos, tão visível que passa despercebido a uma análise mais casual. O modelo de mundo e prosperidade que se projetava era o do capitalismo americano do pós-guerra. Em termos simples, para não tornar o artigo sem sentido: a vida idealizada pelo chamado “American Way Of Life” era o objetivo a ser alcançado ou o inimigo a ser derrotado. Se colocarmos isso em termos musicais, teremos as paradas de sucesso Pop e o Rock/Jazz mais experimental, confirmando e atacando o padrão estabelecido. De uma forma ou de outra, o que estava na mente das pessoas era essa vida de dois carros na garagem, vários eletrodomésticos, sala ampla com televisão colorida capaz de captar os vôos orbitais que estavam na moda. Daí para morar em Marte ou na Lua em 2000 seria, literalmente, um pulo. Se você sobreviveu a este primeiro parágrafo enorme e pouco/nada musical, te aviso que agora vamos adentrar o motivo do texto. Sean O’Hagan

O que ele tem a ver com isso? Explico. Sean, irlandês de Cork, nascido em 1959, é o mais bem talhado intérprete musical deste mundo classe média way of life. Sua visão é precisa, sua marca é perceptível, sua abordagem é elegante. Sean teve uma banda nos anos 1980, Microdisney, que é dessas formações destinadas ao pouco sucesso para uma pequena e fiel base de admiradores. Em meio aos popstars daquela década, O’Hagan brincou de ser um contraponto melódico e doce para as letras invocadas de seu parceiro e amigo, Cathal Coughlan, entre 1982 e 1988. Dois anos depois, ele ressurgiria em sua abordagem mais conhecida e duradoura: High Llamas. Um genial nome de banda para um projeto de produção sob estrita orientação de Sean, buscando, justamente, reinterpretar essa “música otimista-capitalista” de algumas décadas atrás. Já seria sensacional apenas por esta percepção sutil, mas O’Hagan ainda conseguiu imprimir uma marca sonora, trazendo para o presente essa visão de outro tempo, fazendo com que as sonoridades passassem de datadas a moderníssimas num instante.

Além de gerenciar High Llamas, ele participou até 1994 do combo anglo-francês Stereolab, uma instituição de resgate/reinterpretação da mesma fonte sonora, mas com uma abordagem mais nerd, mais voltada para aquela tecnologia das velhas séries de ficção científica e laboratórios espaciais, coisas assim, mas que trouxe para os anos 1990 a visão de otimismo que esse futuro tinha quando era projetado nas mentes das pessoas até fins dos anos 1970, com o apogeu nos 50’s e 60’s. O’Hagan também evoluiu textualmente, digamos, passando de um mero artesão sonoro, sendo chamado muitas vezes de “Brian Wilson britânico”, para um cronista do cotidiano classe média. Os primeiros álbuns de High Llamas eram muito mais peças escapistas de artesanato sonoro, feitas com precisão de relojoeiro veterano, do que crônicas de costumes. Aos poucos, Sean foi notando que falava indiretamente de um tempo recente, cujos padrões e traços culturais ainda são visíveis na sociedade, passando a tecer delicadas narrativas sobre os ingleses e seus artefatos urbanos, seus objetivos, seus kits de identidade a ir e vir pelas ruas. É um trabalho de muita observação e sutilezas.

Com High Llamas, Sean criou dez discos sensacionais, dividindo a obra da banda em dois momentos bem distintos. Os iniciais, representados pelo belíssimo Hawaii, lançado em 1996, com a emblemática faixa Nomads, é uma jujuba sonora de morango, daquelas que tentamos comer a totalidade no pacote que nos oferecem. Outro álbum, Cold And Bouncy, de 1998, já é mais eletrônico e beachboyano ao mesmo tempo, com interlúdios de experimentação contrabalançando as canções mais tradicionais. Os mais recentes são pequenas obras de arte no capricho e na arquitetura de nuances sonoras, mas sempre com ponto de vista do presente olhando para o passado tentando entedê-lo e não recriá-lo. Obras como Beet, Maize & Corn (2003), Can Cladders (2007) e Talahomi Way (2011), cada uma a seu jeito personalíssimo, são como viagens no Epcot Center em forma de música. Tem muito de futuro do pretérito, dessa confusão temporal, dessa visão de convivência de várias épocas no momento da criação do artista.

Essa habilidade rendeu prestígio a Sean. Ele colaborou com inúmeros artistas ao longo dos anos, num espectro que vai de Vanessa da Matta e Moreno Veloso, passando por Paul Weller, Kaiser Chiefs, Gruff Rhys, Sondre Lerche, Mercury Rev, Beth Orton, chegando aos japas sensacionais, Cornelius, Kahimi Karie e Pizzicato Five. Exerceu curadoria especializada em Tropicália no prestigioso Barbican, em Londres, sendo responsável, entre outros êxitos, pelo show de reunião d'Os Mutantes em 2005, quando a banda se reuniu – sem Rita Lee, substituída por Zelia Duncan, mas com Arnaldo Baptista – para uma antológica apresentação por lá, que virou disco duplo ao vivo e desencadeou uma turnê comemorativa.

Agora, início de 2016, vivemos a expectativa de um novo álbum de High Llamas, cuja data de lançamento já está definida para 22 de janeiro. É uma aventurosa incursão de O’Hagan no terreno das trilhas sonoras, mas não cinematográficas, como ele já fez no passado, associado a Tim Gane, seu parceiro em Stereolab. Sean escreveu uma peça de teatro, baseada em personagens reais e fictícios do distrito de Peckham, sudeste de Londres, onde reside. Em idas e vindas de bicicleta, sempre observando as pessoas e os tiques locais, o sujeito foi percebendo uma singular fauna humana de comportamentos classe média. Desenvolveu uma história a partir de uma personagem chamada Amy, que trabalha com publicidade e recebe “um job”, que consiste em relançar o conceito de um centro de lazer na cidade, que está passando da administração pública para a iniciativa privada. A partir dessa história de reinvenção, O’Hagan vai identificar sua própria missão como músico e tecer teorias sobre a passagem do tempo na cidade, sobre lojas que fecham em prédios que ficam, sobre gente que vai, gente que vem, enfim, sobre uma espécie de MMC para todos aqueles que habitam a cidade como a conhecemos hoje, logo, imediatamente familiar para gente como nós.

Com o título de Here Comes The Rattling Trees, o novo álbum promete manter viva a centelha criativa e totalmente contra a maré de Sean O’Hagan. O cara é um gênio da sutileza, você precisa ir atrás de sua obra e se apaixonar, vai lá, anda.

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ARTISTA: Sean O'Hagan
MARCADORES: Descubra

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.