Teresa Cristina abre a cortina e enche o salão

Com convidados ilustres e aulas sobre samba, cantora carioca transformou as aparições diárias em seu Instagram em imperdível ponto de encontro para ouvir música, desabafar, lamentar e celebrar o Brasil

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Fotos: Marcos Hermes

Teresa Cristina nunca se expôs tanto. Em tempos em que todo mundo faz lives, nenhum outro artista mostra tanto a cara quanto ela. Todas as noites, sem exceção, a cantora se veste com a voz que tem e se apresenta no Instagram para um público que se mistura entre anônimos e famosos. Eu, você, Caetano Veloso, Camila Pitanga, Chico Buarque, Paulinho da Viola, Gilberto Gil todos juntos em um mesmo rolê. O repertório é temático – às quartas têm samba enredo, há homenagem a célebres aniversariantes do dia como Maria Bethânia e Antônio Pitanga, além de outras datas comemorativas. No dia desta entrevista, ela preparava material dedicado a solteiros como ela no Dia dos Namorados – “indiretas para o crush” seria o tema.

Teresa aparece para não surtar. No dia anterior à nossa conversa, um homem derrubava cruzes fincadas na areia de Copacabana que serviam de homenagem aos mortos por Covid-19, passando por cima da dor de um pai que lidava com o luto. Ela entende o seu papel político como artista e não passa imune a esse retrato cruel do Brasil atual. “Eu não quero que um sujeito desse seja meu fã, não quero cantar para essa pessoa”, conta. “Diante de tudo isso, eu preciso estar de pé e com a mente sã para que minha filha e minha mãe tenham esperança”.

Quem acompanhou a turnê de Teresa cantando Cartola (2016-17) e, no último ano, a série de shows sobre Noel Rosa, saiu dos espetáculos arrebatado. A impressão foi de que, daquele momento em diante, seria uma tremenda responsabilidade alguém interpretar a obra de dois dos maiores compositores da música popular brasileira.

Para fechar a trilogia voz & violão em parceria com o ótimo Carlinhos Sete Cordas, a cantora espera a quarentena passar para preparar o show cantando Zé Keti. Outro projeto que teve de frear foi o espetáculo Sorriso Negro. Com banda formada apenas por mulheres, Teresa canta e conta o samba negro. De delicadeza e carisma ímpares, Teresa enfileira grandes interpretações de nossos mestres e se fortalece como grande intérprete de um ritmo e de uma geração.

Com 22 anos de carreira, Teresa Cristina tem exposição de sobra e quer mais. Com o sucesso das lives diárias, veio o primeiro patrocínio em 22 anos de carreira. Gesto simbólico, mas necessário para que sejam criadas novas esperanças. A rainha das lives conversou com o Monkeybuzz sobre tudo isso e muito mais – e ainda recomendou cinco discos essenciais do samba.

 

Em uma de suas lives, Caetano disse que “esse negócio de ficar em quarentena deixa a gente sem tempo”. Como você está administrando seu tempo?

Ele está coberto de razão. Não dá para fugir de nada, até porque as pessoas presumem que, por estar em casa, você tem tempo para tudo. Eu acordo tarde, tenho que ver o almoço, arrumar a casa, preparar a live, às vezes tem entrevista para dar, durmo, acordo e quando vejo já está na hora da live.

Fico impressionado com o repertório de histórias do samba que são contadas durante as lives. Você faz a lição de casa ou também carrega muitas dessas histórias?

É um conjunto de coisas. Tem as músicas que eu canto desde sempre, para fazer faxina, tomar banho, lavar roupa, essa coisa de ligar o rádio e cantar junto. Quando vejo, estou cantando em inglês, espanhol. Eu acabei cruzando uma fronteira que fez bem pra mim, perdi a vergonha.

Algum artista que você não teve “o moral” de cantar a obra?

Milton Nascimento.

Não teremos uma live de Milton então?

Até cantei. Conceição Evaristo apareceu em uma live sobre Bahia e me intimou para ter uma sobre Minas Gerais. Eu fiquei passada, porque as melodias são muito difíceis, mas eu não poderia negar um pedido dela. Na cara de pau, cantei e descobri que sei mais músicas de Minas do que imaginava, mas as músicas de Milton são um desafio.

Você nunca passou tanto tempo exposta?

Nunca! Nem quando era do movimento estudantil. E eu nunca fui muito do celular, de postar no Instagram. Não é só uma questão de exposição, eu sinto que criei um grupo de cumplicidade, com pensamentos parecidos, sabe? A gente acredita que a Terra continua redonda, que a Ciência ainda vale alguma coisa e que temos que ficar em casa porque é um vírus letal. É sobre passar noites sorrindo, se emocionando, chorando e se indignando também. É um alento, uma coisa de não se sentir sozinha. A realidade está muito cruel.

É isso que te move todas as noites para continuar com as lives?

Total! Isso me distrai. Não dá para ficar o dia inteiro pensando que fulano é burro, estúpido e genocida.

“Eu não posso me privar de discutir política, porque, como mulher, suburbana e preta, sou grupo de risco nessa história”

É cada vez mais necessário que falemos de política, ao mesmo tempo que muita gente acha que tudo está muito politizado. Algum fã já disse que você deveria se posicionar menos?

São dois trabalhos que ele tem: falar e sumir da minha frente. Tudo é política. Nós estamos nessa lama, porque não queremos discutir política. Cresci com duas máximas que só trouxeram retrocesso – “briga de marido e mulher não se mete a colher” e “política e religião não se discute”. Olha a merda! É por isso que temos no Rio de Janeiro um bispo da Universal como prefeito e uma bancada evangélica que quer votar pelo armamento da população. Eu não posso me privar de discutir política, porque, como mulher, suburbana e preta, sou grupo de risco nessa história.

É difícil se declarar um fã de samba e não ser o mínimo politizado.

Pois é! Não dá para ser fã do Paulo da Portela, Silas de Oliveira ou da Beth Carvalho e achar que a política não tem importância na sua vida. O samba é um desabafo, ao mesmo tempo uma válvula de escape, um lugar de descontentamento, de protesto.

Surgiu um patrocínio para algumas lives no meio da quarentena. O quanto isso é simbólico para uma artista com 22 anos de carreira?

É muito simbólico. Em uma dessas noites, conversei sobre isso com a cantora Mariene de Castro. Ela começou cantando junto comigo, há 22 anos, e também nunca teve patrocínio. Eu olhei para ela e disse: vamos parar e pedir pra alguém tirar uma foto e ver o que temos em comum. O que essas marcas querem divulgar? Qual é o interesse em associar a marca delas a um nome? As coisas estão mudando um pouco, nós estamos discutindo racismo em junho, assunto que só é discutido em novembro no Brasil.

Você já criticou o machismo dentro do samba. Acha que é um meio que tem se descontruído?

O samba é machista, mas o samba não esconde o machismo. O machismo no samba não é maquiado como o racismo é no Brasil. Quando você identifica o machismo e sabe onde ele existe, você sabe quais armas tem que usar para lutar contra aquilo. É diferente de lutar contra uma coisa que alguns dizem que não existe. Essa desconstrução eu enxerguei durante a turnê de Sorriso Negro, em todo canto do país que fui vi um montão de mulheres tocando, compondo. Isso é uma revolução que pode não ser a que joga a estátua no fundo do mar, mas é uma revolução.

Um ano depois da morte de Beth Carvalho já dá para mensurar o seu legado e a falta que faz ou o tamanho dela faz com que precisemos de mais tempo?

Precisamos nos distanciar um pouco para ter noção do lastro que Beth deixou, uma artista que gravou de Pixinguinha a Gabrielzinho do Irajá. Uma cantora com uma visão muito definida do que queria mostrar. Foi velada com o título de eleitor nas mãos, gravou diversos sambas combativos. Quantas pessoas ela colocou no mercado –  Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Luiz Carlos da Vila. Acho que não temos noção do repertório dela. Ela era mangueirense, mas foi quem mais gravou os sambas da Portela. Gravou, inclusive, um samba de minha mãe. Tenho certeza que quanto mais tempo se passar da partida dela, mais teremos essa noção de sua importância para o samba.

A coleção fundamental do Samba, segundo Teresa Cristina

A Arte Negra de Wilson Moreira e Nei Lopes (1980)

“É um álbum de uma das maiores parcerias da música brasileira. Está tudo ali – partido alto, samba-canção, samba de terreiro. Os dois estão cantando muito bem. É um luxo!”

Axé – Gente Boa do Samba – Candeia (1978)

“É uma obra de arte da música brasileira. É, para muitos, o melhor disco de samba já feito e um dos melhores da MPB. Segundo muitas pessoas próximas, Candeia já tinha entendido que estava muito doente e não poderia viver muito tempo e quis deixar um presente para as gerações futuras. E é um presente.”

Paulinho da Viola  (1968)

“Paulinho da Viola acompanhado de uma orquestra regida pelo Maestro Gaia e pelo Marcinho do Trombone. Seu disco de estreia de compositor, com arranjos maravilhosos. É um primor!”

“O machismo no samba não é maquiado como o racismo é no Brasil. Quando você identifica o machismo e sabe onde ele existe, você sabe quais armas tem que usar para lutar contra aquilo. É diferente de lutar contra uma coisa que alguns dizem que não existe. Em todo canto do país que fui vi um montão de mulheres tocando, compondo. Isso é uma revolução, que pode não ser a que joga a estátua no fundo do mar, mas é uma revolução”

Claridade – Clara Nunes (1975)

“Ela começa a entrar no samba com muito mais força. É muito maravilhoso!”

Canta, Canta, Minha Gente – Martinho da Vila (1974)

“Martinho, além de uma pessoa talentosa, ele é agregador. Quando Candeia fica paraplégico, Martinho é o amigo que o leva para o Teatro Opinião para ver as pessoas. Ele é escritor, poeta, ritmista, um Griô, como dizemos no samba. É um rei que não precisa de trono. É um álbum muito importante que sintetiza esse artista.”

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