Todos os rolês de FBC

O rapper mineiro discute os principais temas que permeiam o EP “Outro Rolê” – desigualdade, resistência, criminalidade e fé – e reflete sobre o cenário político brasileiro dos últimos anos

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Fotos: Rafael Barra

Não faz muito que FBC estava vendendo água na rua para sobreviver e levar para família. Foi só quando lançou seu primeiro álbum solo, S.C.A. (2018), que o rapper mineiro passou a viver da sua música. Desde então foram quatro discos, que contam histórias pessoais, mas, ao mesmo tempo, examinam a sociedade brasileira sob a perspectiva das periferias e favelas. Veterano do hip hop com o grupo DV Tribo (de onde também saíram MCs como Djonga, Clara Lima e Hot) e militante ativo em movimentos sociais, FBC tem um modo especial de discutir temas como violência urbana, opressão, crime e fé — sem esquecer, claro, das dinâmicas de festas, bailes e dos amores nas quebradas.

Todas essas pautas aparecem com destaque em Outro Rolê, que o rapper acaba de lançar em parceria com o produtor musical e beatmaker VHOOR. O disco — creditado igualmente ao beatmaker e ao MC — expressa uma visão do mundo constituída pelas experiências de vida na favela. Mais especificamente, a vida na Cabana do Pai Tomás, morro onde FBC vive há 13 anos e que, em suas próprias palavras, “o acolheu quando estava na merda”. Nessa entrevista, o rapper discute os principais temas que permeiam o trabalho (desigualdade, resistência, criminalidade e fé) e reflete sobre o cenário político brasileiro dos últimos anos.

Você é fã de Chico Science e Chris Cornell. Por que você decidiu fazer Rap e não Rock ou qualquer outro estilo?

Uma vez um pastor da igreja da minha irmã foi lá em casa quando eu era bem pequenininho e falou que eu ia ser uma pessoa que ia arrebatar multidões para Deus… Aquelas coisas que evangélico fala, sabe? Eu acho que de alguma forma aquele cara viu em mim o dom da palavra e de conseguir falar para as pessoas, dizendo coisas que elas entendem. Na época que eu comecei a mexer com música, só o Rap conseguia suprir essa necessidade e encaixar tudo que eu estava pensando de uma forma lógica onde eu conseguisse enxergar como arte mesmo. Porque para mim não era só a arte, a poesia em si — mas sim protesto, tá ligado? Quando eu era mais jovem tinha mais o ímpeto da juventude de lutar pelas causas. Era PCdoB, da UJS [União da Juventude Socialista] e o Rap era o elemento das artes que existia na periferia que fazia transbordar isso em mim. Eu já curtia Funk, curtia Rock, tocava na igreja em banda de Rock. Mas o Rap foi o que me fez despertar para o dom da palavra. Sei lá se é a palavra da igreja, da política ou da rua mesmo como uma liderança comunitária.

Eu ia dizer que o Rap foi onde você conseguiu expressar as coisas, mas, pelo que você está falando, parece uma coisa mais profunda. Parece que o Rap foi o tipo de música que te mostrou que você poderia fazer coisas grandes. É isso?

Sim, também! E tem uma questão mais profunda ainda, que é ética e moral, tá ligado? Acho que o Hip Hop mostrava mais valores para mim. Coisas que, de onde a gente vem, pela falta de esclarecimento de tudo, a gente não consegue entender lá do grego ou de qualquer pensador. Acredito que a gente aprendeu que ética e moral é estar vivo, não passar fome, não matar, não roubar. A gente é cria dos anos 90, onde a gente não tinha acesso ao estudo, à escola de qualidade. Eu acredito que hoje também não tenha, mas melhorou bastante desde aquela época em que a gente ia estudar só para merendar. Na minha época, ninguém tinha perspectiva de ir para faculdade. Aí veio aquele advento do Lula com o Prouni. Eu lembro da transformação que teve na periferia, da transformação até dentro do Hip Hop. Quantas pessoas do Hip Hop se formaram pelo Prouni? Pelos movimentos sociais e pelo movimento que o Lula e o PT fizeram ali naquela época. Eu era de movimento social e eu sei da importância que isso teve pro Brasil.

Você era morador de ocupação, né?

Sim, eu era da ocupação Nelson Mandela, fica [na região do] Barreiro. Perto da Vila Santa Rita e de algumas ocupações que formam a Vila das Ocupações.

Em “Frank & Tikão”, que abre seu primeiro disco, S.C.A. (2018), você fala: “Nunca mais vão me chamar de pobre, nunca mais vão me chamar de feio”. Naquela música, a visão é que o dinheiro é algo que muda a vida. Aproveitando que você citou o Lula, eu queria saber como você avalia os governos do PT, que ainda é criticado por parte da esquerda sob o argumento de que ele ofereceu inclusão social só com base no consumo. Queria te perguntar isso porque você também cita Lula em “Money Manim”.

O foda de se falar da favela é que muita gente não entende a favela. Muita gente nunca foi na favela. Conhece a favela pela música ou pelo filme, mas acha que aqui só tem miserável e traficante. Para essa gente, quando o cara não é traficante, é miserável. Lula deu acesso e benefício social para nós. É lógico que as pessoas já tinham uma televisão, já tinham um sofá. É lógico que elas iam inteirar para comprar um carro novo, para levantar a casa… Acho que o consumo não é errado. Não vejo problema em incentivar linhas de crédito para o povo e o povo gastar dentro da periferia, fazer o dinheiro circular dentro da favela. Isso não é errado, tá ligado? As pessoas que acham errado são as pessoas que aplaudem Bolsonaro dando auxílio emergencial de R$ 200.

Minha esposa recebeu Bolsa Família e até hoje recebe (hoje a gente recebe a parcela mínima por conta da minha filha mais nova e porque a gente é morador de favela). Mas outras pessoas que moram no entorno de Betim e outros lugares mais afastados, onde a passagem é mais cara… Como é que você vai tirar um auxílio de R$ 180 de uma pessoa dessas para quem R$ 180 é um respiro? É Igual eu falo em “Money Manim”: “A corrente eu paguei, eu mesmo parcelei no governo do Lula, mano”. Naquela época a gente tinha linha de crédito, a gente podia comprar as coisas. Naquela época a gente podia consumir. E hoje, as pessoas consomem? As pessoas estão vivendo de uma forma que é só para pagar aluguel e comprar comida. Eu mesmo parei de fazer churrasco aqui na rua. Tem muita gente que trabalha e não sobra nada. Muita gente! A carne tá cara e a gente vê as pessoas na hora do almoço voltando com sacola de ovo da mercearia. Existem pessoas que estão passando por necessidade real. Tá faltando uma mistura no prato do brasileiro! As pessoas estão passando fome. Você acha que só comer arroz, feijão e ovo não é passar fome? Isso é miséria! Um país agrícola como o Brasil! Isso é injustiça. É real e eu tô vendo. Não é uma coisa que eu li, que eu assisti, que alguém me falou, que eu ouvi num podcast. Eu tô vendo na frente da minha casa, tô vendo meus vizinhos. E se for para basear o governo no populismo, que seja para dividir a renda e não no populismo de matar pobre, matar traficante. Porque o governo Bolsonaro é um governo populista. Não dá para dizer que não é.

Você acha que o incentivo ao consumo transformou a mentalidade do Brasil e mais especificamente da favela? Teve um aumento na autoestima? E como é hoje?

Esse lance do pessoal consumir no morro e ter dinheiro (tem gente no morro que tem mais de três cartão de crédito) serviu para capacitar os microempreendedores da favela, tá ligado? Essas coisas tipo o FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador) e muitos programas do Lula. O FAT era um programa do governo que estava também no Fome Zero. O governo contribuía com a empresa quando ela tinha muito funcionário e eles almoçavam lá e tinham um ticket refeição. A empresa entrava com uma parte do dinheiro e o governo com a outra. Muitos moradores da favela trabalham nessas empresas de serviços terceirizados e não eram todos que ganhavam ticket refeição. Eu lembro dos anos 90! Isso aí o Lula trouxe. E as pessoas ganhando esses cartões, onde elas iam passar? Nas maquininhas. No passado a gente só encontrava essas maquininhas em mercado grande. Aí no morro começou a brotar as maquininhas — Visa, Mastercard, Sodexo… E isso ajudou o microempreendedor muitas vezes a optar pelo plano Simples — registrar a loja, com legalização e CNPJ (e com isso ele pode obter outras linhas de crédito). Então esse bagulho que o Lula fez de dar para nós a oportunidade e o poder de compra ajudou muito. Não posso falar pelo lado técnico da parada, mas tô te falando pelo lado real e é o que a gente consegue ver no morro.

“O Hip Hop mostrava mais valores para mim. Coisas que, de onde a gente vem, pela falta de esclarecimento de tudo, a gente não consegue entender lá do grego ou de qualquer pensador. Acredito que a gente aprendeu que ética e moral é estar vivo, não passar fome, não matar, não roubar”

O dinheiro é um tema recorrente nas suas músicas e às vezes de forma complexa. O álbum Padrim (2019) abre com “Money Manim”, que fala que “isso é só dinheiro” e que “isso não vale a sua vida”. Aí o disco seguinte é o Best Duo (2020), com Iza Sabino, e na primeira música a visão é totalmente oposta: tudo que se faz vale grana e você está sempre no corre pelo dinheiro. É um conflito que lembra os Racionais quando perguntam: “viver pouco como rei ou muito como um zé?”. Como você entende essa contradição? Parece que é uma neurose típica de quem está na favela.

Cara, isso é uma loucura. Vou dar um exemplo que acontece comigo: eu não posso ficar longe da internet. Não posso ficar um dia longe da internet sem divulgar meu trampo, sem responder meus fãs, sem compartilhar o que os meus fãs tão falando de mim… Só que ficar na internet o dia todo adoece — ainda mais Twitter e Instagram. E com a pandemia eu não tenho outro lugar para divulgar meu trampo, para trabalhar. Querendo ou não, eu sou um artista pequeno. E nisso, aqui da favela a gente olha lá para fora e vê inúmeras oportunidades de fazer dinheiro, das mais fáceis às mais trabalhosas. Igual eu falo na música: se eu fosse levar a sério, na hora que o mano tivesse oferecido o plantão [na boca de fumo] para mim, eu teria entrado. Eu não precisaria fazer nada. Não precisaria colocar a mão na droga, não precisaria colocar a mão na arma ou colocar o pé na rua — eu só teria uma responsa de logística. Só que isso não vale a minha vida, isso não vale a minha história. Mas e nesse tempo de pandemia, como fica? As coisas estão apertando. O que eu vou fazer? A oportunidade que a gente vê lá fora… A maioria das pessoas vê isso. Eu vi diferente, eu vi um capital humano no morro e decidi abrir um lava-jato. Vamo usar da minha influência e do gabarito que os menino têm na parada e fazer uma empresinha. Eu tenho aqui o lava jato Padrim, a vizinha tem um churrasquinho ali com meu nome… E foi isso que eu fiz aqui na favela: imaginar que tudo vale grana, mas nem tudo vale a nossa vida.

Você citou “Levar a Sério”, que é do novo disco. Ela tem um verso que acho foda: “Fiz música ministérios/ Levando esperança até quando não tinha/ Um centavo no bolso pro Minister”. Nesses momentos de panela vazia e falta de grana, qual foi a importância da música para você?

Foram vários os momentos que eu não tive dinheiro nenhum no bolso. Vários. E eu falo com você: se não fosse a música, os amigos que eu fiz na música e os momentos que eu estava fazendo música… Sei lá, acho que eu abraçaria o mais fácil mesmo, não vou mentir para você: o crime. Eu não tive estudo, tá ligado, meu mano? Eu tenho 31 anos e eu vim de um outro tempo e de outro lugar. Eu sou nascido e criado [nos bairros] São Benedito, Azteca, Palmital ali em Santa Luzia [cidade-dormitório na Região Metropolitana de Belo Horizonte], tá ligado? Vivi ali até meus 18 anos. Vim para BH um moleque novo, inocente das coisas. Quando eu cheguei aqui no [morro] Cabana e vi o Hip Hop isso mudou a minha vida. O Rap mudou minha vida e é por isso que eu acredito que minha música nunca pode perder essa essência da autoajuda. Não é querer aconselhar, mas contar sobre o que aconteceu comigo em um momento. Tanto o momento que eu acertei como o momento que eu falhei. Acho que são as formas de humanidade que têm ali na rima e ajudam quem está de coração aberto ouvindo a música. Acho que música é entretenimento, mas também é cura e tratamento. Não é só diversão, também é terapia.

Tem algum som a que você recorreu em um momento de dificuldade e ele te curou?

Quem hoje em dia não tem um nível de depressão, né? Uns tem menos e outros estão mergulhados nela. Mas todo mundo está estressado. Você vê as crianças nas creches, na rua e estão todas estressadas. Eu não era estressado desse jeito, nós não era. Com oito anos de idade, eu tava comendo barro, chutando o dedão no asfalto (risos). Hoje os moleque tá muito aceleradão. E é engraçado que toda vez que eu tô nesse momento eu não recorro a um som — eu faço um. Tem vários que eu posso te citar aqui: “Autoajuda” foi um, “Cimento e Lágrimas” foi outro, “Se Eu Não Te Cantar” e “Ode a Tristeza” também. E teve momentos de fúria também. Acredito que S.C.A (2018) foi um momento de fúria. Best Duo foi um momento de gozolândia, de curtição… Quando eu estava fazendo o projeto com a Iza Sabino eu estava viajando, estava ganhando dinheiro, os bailes estavam pocando… Agora eu fiz o Outro Rolê. Nesse disco a gente pode ver que depois que a bad vem a gente reconhece quem está com a gente de verdade. Acho que o Outro Rolê é um papo assim. E também a gente começa a dar valor para nossas origens e nossa ancestralidade — ainda mais nesse momento de pandemia, que a gente está perdendo a nossa sabedoria ancestral e aprende a dar valor pros mais velhos e ficar mais sapiente. A gente também vai amadurecendo. Envelhecendo e ficando mais esperto.

“Não é querer aconselhar, mas contar sobre o que aconteceu comigo. Tanto o momento que eu acertei como o momento que eu falhei. São as formas de humanidade que têm ali na rima e ajudam quem está de coração aberto ouvindo a música. Acho que música é entretenimento, mas também é cura e tratamento. Não é só diversão, também é terapia”

Em outros discos você já falava de fé, mas no Outro Rolê esse tema aparece com mais força. Em “Dia de Luxúria”, por exemplo, você diz: “Um kilo de prata mais dois de fé” e também repete muito “a união da força e da fé”. O que é essa fé? Não parece ser exatamente religiosa. E de onde ela vem? Porque o horizonte futuro do Brasil é péssimo.

Cara, isso é uma coisa que para mim está estabelecida aqui no morro do Cabana. Eu não sou cria daqui, não nasci aqui. Os caras me consideram cria, porque eu moro aqui tem 13 anos, mas também não é assim… Aí quando a gente vem de fora às vezes consegue ter uma percepção bem mais ampla do que aconteceu do que as pessoas que são do lugar. A forma de entender o contexto é outra. E o que pega no Cabana? O Cabana é um lugar ímpar. É um aglomerado que é um monte de casa e um monte de quebrada junto. E nos anos 90 era uma guerra! A tropa de elite da Polícia Militar chegou até a ocupar a favela durante 40 dias. Os caras estouravam granada, era tiro de fuzil, o barato era louco. E teve duas forças aqui do Cabana que ajudaram mudar isso.

Uma força era a fé. A fé das igrejas, dos terreiros, dos mais antigos que oravam muito. E quando eu mudei para cá o pessoal que era mais velho falou que teve muito livramento por aqui. Era para ter acontecido várias atrocidades que não rolaram por causa dessas rezas. É uma história que daria um filme. As pessoas têm essa ligação muito forte com a religião. A parte de cima do morro estava em guerra com a parte debaixo, mas o pessoal que era da igreja tinha livre acesso pela favela. Um trabalhador lá de baixo que gostasse de fumar uma maconha só comprava [na boca] debaixo, ele não ia comprar na parte de cima — e vice-versa. Mas os evangélicos e o pessoal do terreiro circulavam livremente

E tinha a outra força que surgiu: a força da arte através do Hip Hop. Existia uma política pública de prevenção a conflito na comunidade que chamada Fica Vivo. Isso começou ali no começo dos anos 2000 e durou muito tempo. E nisso tinha uma oficina de Hip Hop tanto na quebrada de baixo quanto na quebrada de cima. E assim como os religiosos o pessoal do Hip Hop começou a ter essa carta branca para circular no morro. E eram moleques muito mais novos que o pessoal da igreja. Tinha moleque que tinha 14 anos de idade e nunca tinha ido na parte de baixo da Cabana. Eles chegavam lá pra grafitar, olhava os beco e aquilo era tudo coisa nova. Você entende a violência que é isso? Então durante uma geração, duas ou três aconteceu isso. Era a força do Hip Hop, a força das pessoas que queriam que isso mudasse.

"Eu não sou cria daqui, não nasci aqui. Os caras me consideram cria, porque eu moro aqui tem 13 anos, mas também não é assim… Aí quando a gente vem de fora às vezes consegue ter uma percepção bem mais ampla do que aconteceu do que as pessoas que são do lugar. A forma de entender o contexto é outra. E o que pega no Cabana? O Cabana é um lugar ímpar" (FBC no terraço de sua casa no morro Cabana do Pai Tomaz, em BH)

E essa força chegou nos dois lados que estavam em guerra — eram dois moleque novo, um daqui de cima e outro debaixo. E eles pensaram: “Vamo acabar com isso. Nós só gasta nosso dinheiro com caixão, velório, arma, munição e advogado. Vamo parar com isso”. E a guerra acabou. Eu nomeei esse movimento que teve na Cabana como a união da força e da fé, que eu canto em “Dia de Luxúria” e “Gameleira”.

No Outro Rolê eu estou falando da minha quebrada. A quebrada que me acolheu quando eu estava na merda, fodido, vendendo água no sinal com todo mundo me zoando porque eu tinha uma estrela do PT na minha caixa de água. Isso foi um ano antes do impeachment [de Dilma Rousseff em 2016]. O pessoal passava e gritava: é por isso que tá aí fodido vendendo água. Eu só parei de vender água para cantar em 2018. Há três anos vivo da minha música.

Numa entrevista ao Whatta você comentou que prefere o estúdio ao palco. É engraçado porque acho que a maioria dos MCs escolheria o show ao vivo. Por que você se sente mais atraído pelo estúdio? Eu sei que o Outro Rolê foi todo feito no estúdio com o VHOOR.

O estúdio é o lugar que a gente a pode falhar. E é o lugar que você pode experimentar. O estúdio é onde tenho a liberdade para ser eu como artista — e não vender um produto. Acho que o palco, a performance é você vendendo um produto que você fez. Também acho que a gente vai dar um valor diferente para o show depois da pandemia. Não vai ser aquele barato de idolatrar. Mas eu não mudo minha opinião, eu prefiro o estúdio, que é onde eu posso fazer o que tenho em mente e experimentar as coisas. Para mim a música é tentar encontrar a batida perfeita. Tentar, porque é difícil. A gente nunca termina a música, a gente só abandona ela. Eu nunca terminei meu trabalho, eu abandonei. Meu produtor embalou ele e tá lá no app para você ouvir.

Um ponto chave do Outro Rolê é a mistura das atabacadas de funk com drill que o VHOOR trouxe. E é interessante pensar nesse disco dentro da tua carreira. Seus primeiros discos solo saíram em meio ao boom do Trap. E enquanto o estilo ficou meio engessado e muitos MCs ficaram presos no Trap, você vinha buscando outras sonoridades — e o disco novo consolida isso.

Eu tenho certo medo nessa proposta que as pessoas já entenderam que eu tenho de sempre tentar inovar e buscar uma sonoridade singular. Eu tenho medo de me tornar o Titãs da minha geração — tipo “o Trap tá ali ele vai; o Frill tá ali ele vai”. Não acho que eu sou um MC que abusa da fórmula. Eu poderia fazer mais 10 músicas de sucesso como “Se Eu não Te Cantar”, naquele mesmo estilo. Só que depois que uma música cumpriu seu papel, ela cumpriu seu papel e vamo para outro trampo. E tem a ver com a bagagem musical que eu tenho. Eu fui criado no quintal de um tio que era fã de Beatles, tinha a discografia toda (o álbum branco, poster na parede, essas coisas todas). Eu estava lá na periferia e meu tio estava ouvindo disco dos Beatles na vitrola — isso na explosão do Rap e do Funk. E aquilo ali me deixava curioso. A gente nasceu na época que era difícil ser pobre, ser minoria. Hoje as pessoas batem no peito e dizem o que são — isso é uma luta, uma conquista nossa. As pessoas não se afirmavam com questões de raça, com sexualidade… Isso era coisa do âmbito acadêmico, só os catedráticos discutiam. Mas a gente estava lá no chumbo e no fogo tentando sobreviver.

"O estúdio é o lugar que a gente a pode falhar. E é o lugar que você pode experimentar. O estúdio é onde tenho a liberdade para ser eu como artista — e não vender um produto. Acho que o palco, a performance é você vendendo um produto que você fez. Também acho que a gente vai dar um valor diferente para o show depois da pandemia. Não vai ser aquele barato de idolatrar. Mas eu não mudo minha opinião, eu prefiro o estúdio, que é onde eu posso fazer o que tenho em mente e experimentar as coisas. Para mim a música é tentar encontrar a batida perfeita. Tentar, porque é difícil. A gente nunca termina a música, a gente só abandona ela"

Nesse contexto de periferia, a arte parece ter um sentido diferente da arte mais tradicional — e feita por pessoas mais ricas. Parece que a arte não é só uma forma de expressar os sentimentos, mas também uma maneira de documentar a existência e de se manter vivo. O que você acha?

A transgressão parte da revolta do indivíduo. Da revolta da forma como aquele indivíduo se encontra, que ele não aceita. Para nós a arte é isso. A gente pensa na arte como forma de ganhar o pão. Sempre a gente pensa em vender, a gente não pode se dar ao luxo de guardar para nós.

Já que você faz para vender, bateu algum medo de que as pessoas não fossem comprar a proposta de um disco como o Outro Rolê? Afinal, você já era conhecido no Trap. Deu medo passar para o Drill?

Eu sentiria insegurança se fosse uma busca que eu tivesse feito para isso. Acho que tudo aconteceu de forma natural. Eu encontrei o VHOOR, que faz Drill e chill baile desde num sei quando. Não foi nada forçado. Então não foi pré-estabelecido, tanto que a gente criou outro termo, Drill de BH ou Drill de bocada, porque é diferente. Longe de mim falar que é melhor, mas realmente é diferente. Todo mundo que faz Drill no Brasil faz com a maior competência, mas eu sempre busco fazer minha parada. A gente ficou lá no estúdio até chegar nesse tipo de som. E uma das pessoas que foram importantes nessa busca foi o DJ Spider, que tinha um backup das antigas com um monte de atabaques e vários pontos de funk das antigas. O cara tinha gigas e gigas a história do funk em arquivo. E o VHOOR é um cara que sincretiza as paradas. Ele traz o que há de bom e religioso dos dois lados. O jeito que ele monta os hi-hats em cima dos atabaques é muito louco. Estilo “Gameleira”. Se você ouve de onde vem [o sample], você nem imagina que chegou naquilo.

Um dos temas do disco é o tráfico, sob o ponto de vista do traficante — o que é interessante, já que na guerra às drogas só vemos a versão da polícia e dos políticos. Você já comentou que o tráfico é o quarto poder no Brasil e eu queria entender como você vê o tráfico nas comunidades hoje, em um momento em que as favelas estão economicamente vulneráveis com a pandemia.

Eu penso assim: outro dia teve uma operação aqui no morro e apreenderam 50 mil pinos de pó. Lá nas anotações esse pó era para uma semana. Um pino de pó é R$ 20. Multiplicando isso dá R$ 1 milhão. E para onde tá indo esse dinheiro? Você acha que esse dinheiro não está entrando para favela? O traficante tá ali… Aliás, traficante, não! O guerreiro! O trabalhador, o cara que tá ali vendendo droga. Aquele cara que tá lá vendendo uma maconha não é um traficante. Se ele fosse um traficante, a situação dele estaria bem melhor. Ele é um trabalhador de rua, igual um camelô. E, mano, R$ 1 milhão. Não quero entrar no detalhe de quanto a polícia ou político ganham disso, eu não sei nem se pagam. Mas vamos pensar: o trabalhador que tá ali. Você não acha que ele vai comprar uma coxinha, dar um dinheiro para mãe dele, mandar um fulano ir buscar alguma coisa? Isso é dinheiro entrando na favela, querendo ou não. E é época de pandemia! Quem tá dando dinheiro para esse povo? Eu não tô, tá difícil para mim. A gente não sabe nem o que pensar mais: ou vira bolsominion ou fica doido de revolta. Você pode ver que a maioria do Brasil está virando reacionária. E vai falar o que do tráfico? É o que está fazendo a favela sobreviver de forma indireta. Tem vários lugares aí que os caras [moradores] compram cesta básica, mas não é isso que nós quer. Eu quero que o Brasil dê um jeito no Brasil. A gente não precisa do tráfico de drogas. O Brasil é autossuficiente, mas para onde está indo esse dinheiro? Eu não sei. É só para máquina pública? O Brasil está numa situação que ninguém quer se desfazer do privilégio. E as pessoas que estão embaixo só querem ocupar esses espaços de privilégio sem mudar nada. A gente vive aqui na barbárie. Sabe o que o Brasil é, meu mano? O Brasil é um grande moedor de carne.

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ARTISTA: FBC, VHOOR