Trama – Primeiros Passos Rumo Ao Futuro

Seja como gravadora ou como portal, esse nome definiu a história da música contemporânea brasileira

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O que você faz quando quer ouvir uma música? Sintoniza alguma emissora de rádio? Liga a TV? Ou entra na Internet e busca algum site que viabilize aquela canção? Houve um tempo, há cerca de 20 anos, em que a última opção era pura ficção científica. O mundo não comportava outras formas além da compra de alguma mídia física ou a dependência da estrutura de divulgação de artistas e seus discos e canções nos meios de comunicação de massa. Como já disse alguém, não há nada mais antigo que o passado recente, certo? Ainda que seja bem importante, essa questão não é o foco principal da nossa revisita à Gravadora Trama, que surgiu em meio a essa transição do ato de procurar algo para ouvir, envolvendo questões até então simples, ou seja, como e onde ouvir. Além disso, ela funcionou como uma testemunha da mudança de vários paradigmas artísticos na música popular nacional, optou sempre por olhar para frente, em busca de renovação e descoberta de novos valores. Alguns passos dentro do futuro foram dados.

A empresa foi fundada por João Marcello Bôscoli e os irmãos Cláudio e André Szajmann em 1997, surgindo como uma alternativa ao mercado habitual de música produzida no país. Num primeiro momento, o papel da Trama foi dar voz e espaço para novos e novíssimos talentos, que procuravam sem sucesso oportunidades em gravadoras estabelecidas no mercado. Além deles, com o tempo, alguns nomes mais conhecidos foram migrando naturalmente para as fileiras da gravadora. A Trama foi a consequência natural da interseção entre os caminhos de João Marcello, Jair Oliveira, Wilson Simoninha, entre outros. Em meados dos anos 1990, Bôscoli apresentava o programa Cia. da Música na CNT, enquanto levava adiante uma carreira de produtor e músico, tocando bateria. O resultado viria em 1995, quando lançou seu primeiro trabalho, João Marcello Bôscoli & Cia, um álbum que já contava com a participação de seu irmão mais novo, Pedro Mariano, além de Simoninha, Max de Castro , Claudio Zoli, Milton Nascimento , César Camargo Mariano, Marcos Suzano e Daniel Carlomagno. Com o relativo sucesso, João Marcello manteve-se ocupado e produtivo no ano seguinte e fundaria a Trama em 1997, junto com os irmãos Szajman. Além deles, Simoninha e Jair Oliveira (recém-chegado do exterior) já ensaiavam a fundação da produtora S de Samba, na qual dariam início a incursões no ramo da publicidade e na produção de jingles.

O primeiro lançamento da Trama veio da informalidade. Simoninha estreou uma temporada no início de 1998 e resolveu levar para o palco do Supremo Musical as jams que aconteciam na casa de Jair, logo após o futebol das manhãs de sábado. Dela participavam os mesmos criadores da Trama, além da irmã de Jair, Luciana Melo. O projeto Artistas Reunidos surgiu na noite paulistana e foi parar num disco, gravado ao vivo, mostrando como eram essas apresentações. Entre covers de Jorge Ben, Claudio Zoli e Simonal, canções próprias e a certeza de que aquelas novas vozes chegavam com algo a dizer, muito além das meras revisitas. Em pouco tempo vieram os álbuns solo desses novos nomes. Simoninha lançou o bom Volume 2, Max de Castro, seu irmão, soltou o indispensável Samba Raro, o produtor e cantor Daniel Carlomagno também veio com seu primeiro álbum homônimo, Luciana Melo apresentou É Assim Que Se Faz e Pedro Mariano também lançou o bom Voz No Ouvido.

Todos estes jovens artistas mostraram um traço em comum: modernidade. Estes eram discos com inspiração totalmente brasileira, soando como atualizações desta tradição nacional através do encontro com ritmos, conceitos e visões universais, movimento cíclico na arte feita por aqui.

Além dessa preocupação estética com a música brasileira, digamos, mais convencional, a Trama inovou e deu espaço para uma série de lançamentos de artistas de música eletrônica. Em pouco tempo, trabalhos de gente como Mad Zoo, DJ Marky, DJ Patife, DJ Marcelinho, M4J e Fernanda Porto, entre outros, estavam em lojas de discos obscuras e nas nascentes megastores. A gravadora também soltou trabalhos de Rap/Hip Hop (Xis, Rappin’ Hood, Camorra), Samba (Leci Brandão, Jair Rodrigues) e herdeiros do Manguebeat, como Otto e Nação Zumbi. Com o tempo, artistas consagrados como Ed Motta e Gal Costa https://monkeybuzz.com.br/artistas/gal-gosta/ vieram para o elenco da gravadora.

Em meio a esta grande renovação, os diretores da Trama seguiram com a noção de que o mundo estava mudando e rápido. Acompanharam as primeiras batalhas judiciais entre as gravadoras convencionais e o Napster, tentativa pioneira de criar comunidades online de trocas de arquivos mp3, derrotada pelas ações coordenadas pelos grandes grupos corporativos multinacionais. O primeiro passo, no entanto, já estava dado e, dali em diante, seria impossível dissociar Internet do consumo de música no mundo. Atento a esses fatos, Bôscoli e os irmãos Szajman deram o pontapé inicial na Trama Virtual, que veio em 2004, alguns anos depois do lançamento do portal da gravadora na Internet. Não é exagero dizer que o site antecipou o que veio a ser o Myspace.

A Trama Virtual teve existência com luz própria. Enquanto a gravadora seguia lançando os álbuns no formato físico, milhares de artistas independentes tiveram a oportunidade de colocar seus mp3 à disposição do público via download remunerado. Foi a oportunidade de ouro para muitas bandas, de Vanguart a Teatro Mágico, de Lulina a Cansei de Ser Sexy, de Móveis Coloniais de Acaju a Nevilton. Criou-se uma grande comunidade de distâncias curtas e novos (e renovados) sons, possibilitando um aumento enorme do alcance e da visibilidade de toda uma nova geração de artistas. Iniciativas ingênuas, porém significativas tiveram lugar. O lançamento do primeiro CD do Cansei de Ser Sexy, por exemplo, vinha com um CD-R para que o dono gravasse uma cópia para presentear algum amigo. Mesmo assim, com a rapidez da evolução tecnológica e sua contrapartida cultural, o site, a gravadora e o conceito da Trama foram vitimados com o passar do tempo. Em 2013, o portal encerrou suas atividades e seu imenso acervo saiu do ar. A gravadora, apesar de insistir no lançamento de CD’s físicos, tentou inovar com o conceito do Álbum Virtual, que seria gratuito para o usuário mas com uma remuneração prevista por patrocinadores. A ideia também não teve grande repercussão. As ações pensadas não conseguiram fazer frente a sites como YouTube, iTunes ou mesmo Facebook, que substituíram e ampliaram a capacidade de contato e troca entre bandas, público e demais instâncias. Além disso, o conceito de download pago ainda engatinha em muitos lugares, deixando o uso da Internet ainda cheio de risco em termos de investimento para novos artistas ou qualquer um que tente se inserir neste mercado.

Hoje em dia, podemos dizer que não temos uma gravadora brasileira. As próprias multinacionais seguem agonizando, insistindo em ignorar a Internet, mas ainda dando as cartas em muitas instâncias. Por exemplo, na produção de um festival como o Rock In Rio, é preciso que os artistas tenham algum disco lançado no país, algo que condiciona, restringe e impede a chegada de novos talentos que possam existir aqui e lá fora. A Trama surgiu como uma promessa de revisão dessa ordem, de ousadia e interesse em mudar. Enquanto teve fôlego, seus objetivos foram alcançados. Agora nos resta esperar pela próxima revolução.

“Manifesto Trama

Os presidentes André Szajman e João Marcello Bôscoli apresentam a carta de intenções da Trama, com suas crenças e propostas. O objetivo desse Manifesto foi criar um documento mutável que refletisse nossas crenças e propostas. Para isso, mergulhamos em um processo intenso, onde depois de seis anos de fundação, revisitamos, questionamos e acrescentamos novas idéias à nossa TRAMA.

Nós não podemos aceitar que nossos valores se diluam com o crescimento da nossa empresa. O que você vai ler a seguir é uma grande parte dessa busca por inovação, renovação e movimento. André Szajman e João Marcello Bôscoli, 19/10/2004

MANIFESTO TRAMA

Nós da Trama acreditamos que:

– A vida sem música é um erro. A música é uma crônica de sua época. Os interesses comerciais não podem definir a música. A música é definida pelas pessoas e pelo seu tempo.

– Música é nossa Essência. Acreditamos na capacidade da música emocionar e transformar pessoas. E, além disso, acreditamos na arte que sensibiliza mas que também desperta consciência e senso crítico. Acreditamos que a arte é um caminho para o desenvolvimento político e social do país.

– Devemos preservar e valorizar as relações humanas. Somos indivíduos antes de tudo. O caminho para uma relação saudável entre artistas, produtores, distribuidores, difusores e consumidores é a busca constante pela manutenção da conexão entre o que se acredita como pessoa e o que se pratica como profissional ou empresário (valores éticos e estéticos).

Assim como na educação e na saúde, a música não pode ser exercida por pessoas descomprometidas, ou que não tenham ligações emocionais e filosóficas com o que fazem. Acreditamos que é preciso ter sinceridade, ética e emoção.

– A tecnologia existe para servir a música e não o contrário. Acreditamos em novas e tradicionais tecnologias, que criam novas maneiras de trabalhar, produzir, pesquisar, ver e ouvir. A tecnologia digital (Internet, celular, TV, etc.) é a maior difusora de música da história da humanidade, convergindo divulgação e consumo em tempo real.

– Propósito Original. Não havia uma empresa no início dos tempos e um artista foi pedir emprego. Havia sim um artista e ao redor dele se construiu um negócio. Toda vez que esta direção for invertida teremos problemas, pois o propósito é e sempre será a MÚSICA.

Por tudo isso, nós da Trama nos propomos a:

– Utilizar a música como principal critério de decisão. Música é o centro do nosso universo, nossa prioridade, inspiração e meio de vida. Estimular um movimento de transformação da indústria que dê à música sua devida importância – cultural e mercadológica – dentro do negócio, respeitando seus valores e propósitos originais.

– Reunir pessoas que acreditem nas mesmas coisas que nós. Investir no artista que cria sua obra, acredita nela e constrói uma carreira sustentável; que realiza todo o seu potencial de mercado através do talento e mérito. Isso para nós é sucesso.

– Incentivar e apoiar o artista nacional para que seu trabalho tenha forma, acabamento e linguagem reconhecíveis internacionalmente. Fortalecer e estimular a atuação da música independente. Manter uma constante busca por inovação, renovação, consolidação e perpetuação das obras artísticas brasileiras.

– Utilizar a tecnologia digital como facilitadora da prospecção artística, da criação, produção, interação, promoção e distribuição de música. Criar relações baseadas no respeito, liberdade e compartilhamento de visão ética e estética de uma forma consensual, nunca imposta.

– Valorizar as relações humanas: artistas, veículos e consumidores, todos nós somos indivíduos antes de tudo. Manter relações transparentes e verdadeiras.

Somos um movimento de MÚSICA!”

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.