Tudo, Menos A Garota

Redescubra um pouco da trajetória desse incrível duo datado dos anos 80 e que está na ativa até hoje

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Seria legal se vivêssemos num país que cultivasse o costume nobre de relançar a obra de artistas interessantes. Com a crise da indústria musical e a noção de que música pouco importa, o Brasil segue com desempenho patético em termos de relançamentos de disco e sua entrada na era do “culto ao vinil” também é altamente questionável, numa lógica em que poucos ou nenhum relançamento neste formato é bancado pelas filiais tupiniquins das gravadoras. Seria interessante se vivêssemos, por exemplo, numa Inglaterra, lugar abençoado por uma noção bem apurada em termos valorizar obras que podem ter o gene de atemporalidade ou, quando muito, detém potencial de agradar aos fãs de uma banda ou artista que, certamente comprarão novas edições de discos queridos do passado. A discografia do Everything But The Girl, dupla formada no início dos anos 80 por Tracey Thorn e Ben Watt, passa por um processo meticuloso de relançamento por parte da gravadora Edsel.

O EBTG tem uma elegantíssima participação no que poderíamos chamar de Pop elegante. Nada do que fizeram foi excessivo, histriônico ou desnecessário. Começaram como uma dupla que passeava pela encruzilhada do Rock dos anos 80 com ritmos que pareciam estranhos àquela época, mas que chegavam aos ouvidos dos jovens ingleses por conta da reavaliação dos sons africanos e americanos de matriz negra. O Jazz, por exemplo, e o próprio samba, foram inspiração para não só para Watt e Thorn, mas para bandas como Matt Bianco, Swing Out Sister, provocaram a criação do Style Council pelo ex-Jam Paul Weller e também o surgimento de uma diva cantante como Sade. A dupla se conheceu na Universidade de Hull e formou o EBTG em 1982 e escolheram o nome a partir de um anúncio exibido numa loja de móveis, que dizia, ao mostrar a mobília para um quarto de casal, que “fornecia tudo para o quarto, menos a garota”.

Com o nome definido, Watt imprimiu sua marca musical, ou seja, o flerte aberto com orquestrações “bossanovísticas” e cacoetes bem sacados do Jazz mais popular dos anos 50/60. Com os vocais grandiosos e belos de Tracy, a dupla teria um belo futuro pela frente. No mesmo ano da formação, gravaram uma versão em ritmo de samba de branco para um standard de Cole Porter, Night And Day, algo que, caso fosse feito hoje, talvez não chamasse tanta atenção. A época, no entanto, era para esses flertes pops, mas Everything But The Girl demorou mais dois anos para acontecer, quando a dupla gravou outra cover, dessa vez para uma canção do Jam, English Rose, chamando a atenção do próprio Paul Weller, às voltas com a mesma sonoridade em sua novíssima banda, Style Council. Ele chamou a dupla para participar das gravações do segundo álbum do grupo, Cafe Bleu, responsável pelo estouro europeu que viria logo após. Com recomendação de um dos líderes dessa estética sonora, o EBTG logo estava gravando seu primeiro álbum, Eden, a ser lançado no fim de 1984.

Com o sucesso garantido, logo em seguida veio Love Not Money, cheio de letras com certo conteúdo social e que traria a brejeira When All’s Well, que tocou muito em rádio, inclusive no Brasil, fato que colocou a dupla no mapa das novíssimas sonoridades que vinham da Inglaterra sem, no entanto, alcançar o sucesso nos Estados Unidos, o que ainda configurava um objetivo a ser alcançado. O terceiro disco, Baby, The Stars Shine Tonight, lançado em agosto de 1986, trazia arranjos orquestrais de autoria de Watt e belas canções como Country Mile e remissão a símbolos da América, como Marilyn Monroe, homenageada em Sugar Finney, ainda manteria a dupla na mesma estética dos primeiros tempos, algo que mudaria sensivelmente a partir do quarto trabalho, Idlewild, de 1988, no qual os trabalhos eram iniciados com uma cover corretíssima de I Don’t Want To Talk About It, sucesso na voz de Rod Stewart, mas de autoria de Danny Whitten, guitarrista do Crazy Horse, falecido em 1972. Com uma sonoridade mais enxuta, sem adereços e calcada na interação entre a voz de Thorn e as guitarras acústicas de Watt, o EBTG trouxe belas canções próprias como Apron Strings e I Was Always Your Girl, mas mostrou indecisão quando resolveu gravar o novo trabalho, Language Of Life em Los Angeles, com músicos cascudos de Jazz, entre eles o gigantesco Stan Getz, responsável por discos clássicos como Getz & Gilberto, no qual abria as portas dos Estados Unidos para a bossa nova, no início dos anos 60. Mesmo que houvesse a produção luxuosa de Tommy Lipuma, com discos de Frank Sinatra no currículo, a ideia não rendeu o esperado e a dupla retomaria um formato mais pop com o trabalho seguinte, Worldwide, lançado em 1991. O disco era muito mais próximo dos dois primeiros trabalhos, com forte acento em ritmos exóticos, mas a dupla receberia uma notícia terrível durante as gravações de Acoustic, um álbum de canções próprias e covers bonitas de canções como Alison (Elvis Costello) e Time After Time, sucesso de Cyndi Lauper, no fim de 1992. Ben Watt fora diagnosticado com a Síndrome de Churg-Strauss, uma doença degenerativa, que quase o matou e obrigou a dupla a pisar no freio.

O que poderia ser uma tragédia ganhou contornos de reinvenção. Com Watt debilitado mas capaz de manter-se saudável novamente, a dupla precisou mudar sua forma de fazer música, cedendo o lugar dos arranjos luxuriantes para uma instrumentação mais enxuta, que tendia a oscilar entre o acústico e o eletrônico, para um conjunto de canções sobre desilusão amorosa em larga escala. Duas canções dão a pinta logo no trabalho seguinte, Amplified Heart, de 1994: Rollercoaster e Missing, sendo que esta receberia versões remixadas e cheias de batidas dançantes, aproximando o EBTG de uma visão de música noturna que parecia impossível. A partir desse momento, a dupla se aproxima do pessoal trip hop de Bristol, culminando com a participação luminosa de Tracy Thorn na faixa título do segundo disco do Massive Attack, Protection. A mutação completa do EBTG viria no trabalho seguinte, Walking Wounded, de 1996, no qual coexistiam Trip Hop, Jungle, Techno, entre outros ritmos que mostraram-se totalmente palatáveis e adequados ao approach da dupla. A faixa título fez muito sucesso, tendo seu clipe permanecido em altíssima rotação na MTV.

O disco seguinte, Temperamental, seria o último de material inédito a ser lançado pela dupla, mantendo a mesma sonoridade do trabalho anterior, cheia de instrumentais eletrônicos e sucessos como Five Fathoms ou Lullabye Of Clubland. Ao longo dos anos 00, teríamos lançamentos de coletâneas interessantes como Like The Desert Miss The Rain (título tirado de um verso de Missing), de 2003, que enfatiza a mutação eletrônica da dupla, além de trazer Protection, do Massive Attack, Corcovado, de Tom Jobim, gravada para o disco Red, Hot + Rio e Adapt Or Die, de 2006, com remixes e reinterpretações. A Edsel está relançando três discos do EBTG, The Language Of Life (1990), Worldwide (1991), que traz Acoustic como disco bônus e Amplified Heart, dando sequência aos relançamentos dos primeiros trabalhos da dupla, a partir de 2011. Todas as novas versões trazem várias faixas bônus, sobras de estúdio, versões ao vivo e remixes, principalmente o arrasador remix de Missing, feito por Todd Terry, que aparece em quatro versões. É um verdadeiro banquete para os fãs, que aguardam os dois álbuns restantes do catálogo do EBTG, Walking Wounded e Temperamental, que abraçam a eletrônica fabulosa dos anos 90. Coisa de gente grande e altamente recomendável.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.