Tudo parte da Masterplano

Da vocação da capital mineira para a rua e do desejo de ressignificar espaços, o coletivo belo-horizontino inaugurou uma cena – e, desde 2015, ajuda a perpetuá-la constantemente com festas de música eletrônica, encontros e debates

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Fotos: ORANDUU

Quando fui a uma Masterplano pela primeira vez, em 2016, era uma coisa de outro mundo. Eu não conhecia bem qual era o plano, que dirá o master: fui parar em uma fábrica abandonada e até então desconhecida. Não sabia o que era um clubber, não sabia dançar uma música sem letra, nem o que estava fazendo ali. E me deparei com vários amigos e conhecidos, alguns extremamente familiarizados com o conceito – outros, tão perdidos quanto eu.

Alguns anos depois, em 2022, a Masterplano já é uma entidade em Belo Horizonte. Não existe não saber dela: é um Evento, assim, com E maiúsculo, que movimenta milhares de pessoas. Mas não cabe muito comparar a Masterplano com a festa que você conhece de outro lugar. A Master é profundamente belo-horizontina.

Essa é uma das primeiras coisas que SUPOLOLO – alterego noturno de Sosti Reis, DJ, produtor e fundador da Masterplano – levanta em conversa. Ele insiste que, por mais que até existam comparações com a cena de Berlim, a Masterplano é daqui. Mais especificamente, das ruas daqui: “A nossa cidade se apropriou bastante da rua desde junho de 2013. A gente tá aqui. A gente participou das ocupações populares, Praia da Estação, Carnaval de rua… a gente é fruto desse meio, Belo Horizonte”.

E não é exagero: toda uma geração belo-horizontina vem dessas ruas. Que outra cidade inventa de aproveitar o chafariz da praça e chamar de praia, dando desculpas pra galera chegar de biquíni e guarda-sol? Do prazer ao político, passando pela interseção de ambos, a vida na cidade é permeada pela rua. E isso se intensificou, principalmente, com o crescimento vertiginoso e imponente do Carnaval.

“Esse reavivamento do Carnaval de BH, isso também nos inspirava”, ele conta. “Porque as pessoas vão para um bloco, as pessoas vão pra rua por causa de um som. E às vezes o som é precário. Mas tem um rolê!”.

É desse contexto – da vocação que Belo Horizonte tem para a rua, nas palavras de SUPOLOLO – que a Masterplano surge. “De festa na rua, apropriação do espaço público, intervenção na cidade”, ele ressalta. O coletivo, formado hoje por 8 integrantes (Belisa Murta, Carolina Mattos, João Nogueira, Lu Escarrbe, Pedro Pedro, Romana Abreu, Vítor Lagoeiro e o próprio, Sosti Reis), começou com 20 pessoas, lá em 2015. Apesar do grande número de integrantes, a ideia começou bem mais tímida: era só uma festinha em casa, em Ouro Preto. Mas talvez fosse um nome premonitório – antecipava que o plano, na verdade, seria muito maior do que os envolvidos sequer imaginavam.

Aos poucos, o coletivo foi criando pequenas aglomerações na cidade, “do jeito que dava”. Imagine só: alguns DJs tocando no computador mesmo, com um P.A. alugado em um bar chamado Família Miranda, daqueles com placa da Skol e valor da cerveja já no letreiro. Não era a primeira expressão de música eletrônica na cidade, mas a mais democrática naquele momento; uma contrapartida ao “paredão de boys”, que acontecia em clubes, e às raves com público bastante específico, extremamente heterossexual. Era tão singular que, às vezes, “qualquer coisa que rolava de música eletrônica o pessoal chamava de Masterplano”. Como se a Master estivesse inventando a roda na cidade.

Não que, de certa forma, não estivesse: existia algo de inovador na Masterplano, surgindo naquele contexto, com objetivos muito atuais. “A Masterplano veio para negar algumas coisas”, afirma SUPOLOLO. “Principalmente a apropriação desses espaços: tipo, por que a música eletrônica tem que estar projetada em um clube? Por que não pode ir para uma garagem, um campo de futebol, por que não pode ir para o viaduto, uma praça, ou a porta de uma padaria? Por que esses DJs precisam ser experientes? Não podem ser novos atores mixando, descobrindo, errando? Não podem ser mulheres, LGBTs, pessoas negras, produzindo essa música e levando seus pares nessa cena?”

“Por que a música eletrônica tem que estar projetada em um clube? Por que não pode ir para uma garagem, um campo de futebol, ir para o viaduto, uma praça, ou a porta de uma padaria? Por que esses DJs precisam ser experientes? Não podem ser novos atores mixando, descobrindo, errando? Não podem ser mulheres, LGBTs, pessoas negras, produzindo essa música e levando seus pares nessa cena?” – SUPOLOLO

E isso ressoou rapidamente. Para Walli Nascimento, produtor da Batekoo em Belo Horizonte e “clubber desde novo”, a percepção da cena mudou por completo depois da Masterplano: “Sempre consumi muita música eletrônica. Mas meus amigos negros mesmo, eles tinham uma visão muito segmentada, que a música eletrônica em si era uma coisa muito branca. Com a Masterplano, fui descobrindo vários DJs… e falei ‘pera, não tem nada disso. Quem criou a música eletrônica fomos nós, negros.’ E a gente não tem que sentir que esse local não é nosso”. O curioso é que, de alguma forma, existia essa demanda reprimida; a Masterplano só a acordou. Como uma cidade que não sabia o que queria – até o que ela queria aparecer –, Belo Horizonte foi, aos poucos, respondendo ao movimento com afinco e formando uma cena clubber própria.

Uma parte dos integrantes da Masterplano se dividiu, fundando a 101Ø – outra festa muitíssimo relevante na cidade; além dela, surgem Mientras Dura, Curral, Love/Paranoia, Silicose, Baile Room, Beagrime e mais. Para Bright Clouds, DJ, produtor e residente da Love/Paranoia, a Masterplano foi fundamental para esse processo: influenciou todos os vários coletivos que surgiram depois, fosse musicalmente ou na mentalidade. Hoje, combinando com a vida cultural pulsante dos últimos anos, BH tem festas com techno, house, bass, disco, todo fim de semana – e bloco com DJs no meio do Carnaval. Convencionou-se a “pista de BH” e o que se entendia dela – uma galera receptiva, aberta, colaborativa, inventiva. Galera essa que não quis parar de dançar tão cedo e hoje, no “pós-pandemia”, os primeiros lotes da Masterplano esgotam em horas.

Com essa disposição toda, o coletivo agora tem outros horizontes. A primeira celebração do retorno, a apelidada “Mineirona” (assim chamada por ter um line-up exclusivamente mineiro e acontecer no Mineirão), foi um marco disso: reinaugurou as pistas não só com sets, mas com a performance ao vivo do miami bass de FBC & VHOOR. Na edição seguinte, a Master incluiu o soul do Quarteirão do Soul, funk belo-horizontino de DJ Scar, UK garage com RUADOIS e disco, entre outras coisas, com ninguém menos do que Fernanda Abreu. Em um reencontro passional com a pista, a Masterplano aproveitou a oportunidade para abrir os braços e dizer, como pôde: “música eletrônica é tudo isso que vocês estão vendo”.

Não por acaso, a festa anunciou uma nova residente, a DJ Kingdom – DJ da girlgang FENDA e precursora das festas Baile Room e Bronka. Adição muito bem-vinda à festa, Kingdom sempre tomou a Masterplano como referência, mas tem sua parte a contribuir: “Vim do hip hop e penso que se movimentar em outros espaços e em outros gêneros musicais é uma missão de vida e relacionamento para todo DJ”. Orgulhosa da sua trajetória, ela pretende trazer suas pesquisas da Música Eletrônica Periférica diretamente para a pista da Masterplano.

“Vim do hip hop e penso que se movimentar em outros espaços e em outros gêneros musicais é uma missão de vida e relacionamento para todo DJ” – DJ Kingdom

Walli vê esse processo como uma evolução, além de um facilitador para novos públicos. “Muitas amigas minhas são do rolê do funk e tão falando ‘nossa, que massa’. Às vezes um DJ da quebrada tá tocando, igual DJ Scar, que é da Serra… (…) É muito interessante ver que pode ser um rolê múltiplo, pluriversal, englobar vários gêneros. E é muito satisfatório ver essa evolução e ver que todos têm espaço.”

A Masterplano inaugurou a cena e ajuda a perpetuá-la constantemente, com um entendimento da música eletrônica sem preciosismos. Negação do status quo, sim, mas também a afirmação de um novo espaço, um novo público. E o coletivo sempre foi além da festa, promovendo espaços formativos como contrapartida: desde pequenos cineclubes até o festival Clubbers da Esquina, organizado online em dezembro de 2020 com diversas oficinas (iluminação, mixagem, cenário), a Masterplano procura devolver. A partir dessas conversas, se formaram ambientes mais receptivos para as minorias, agora pilotando o som, organizando os rolês, trabalhando na segurança ou ocupando as pistas.

Afinal, a Masterplano sempre entendeu a música eletrônica como democrática, plural, vivíssima. Para SUPOLOLO, “não é só um DJ tocando, tem uma pessoa produzindo, é um corpo que tá ali. Sentindo. Mandando energia, criando coisas”. E se há corpos lá presentes, que sejam dos mais diversos – dos que nem sempre tiveram acesso, mas têm a vontade; dos que se mexem e botam pra mexer.

Cá entre nós, a essa altura, a festa já cumpriu sua missão: viu, veio, venceu. Formou públicos, conquistou novos, ensinou a tomar as ruas e dançar. Estimulou quem tinha a música eletrônica dentro de si e mal sabia; agora, o que vier é lucro. “Há um tempo não tinha nada pra fazer, amiga, sério”, encerra SUPOLOLO, rindo. Eu concordo porque sei que é verdade. “E olha como a cidade é hoje? A gente não aguenta mais rolê. A gente fica exausto no fim de semana!”.

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