Tuin, montagens no Fruity Loops e som de passarinhos: no estúdio com DJ K e JLZ

Em uma session com os dois artistas, acompanhamos demonstrações de como a música eletrônica periférica segue renovando possibilidades e criando sua própria gramática sonora, à revelia do que a indústria pré-estabelece como norma – o que resulta em musicalidade dissidente e subversiva

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Fotos: Felipe Larozza

Morador de São Bernardo, o DJ K, 21 anos, é uma peça chave na consolidação de um novo som do funk mandelão, aquele que barulha os bailes de favela de São Paulo com uma sonoridade agressiva e um tuin super agudo em alto volume. Conhecido como “Bruxo” (o seu bordão diz “não tá mais produzindo, tá fazendo bruxaria”), ele produz há três anos e é responsável pelos beats de sucessos dos paredões como “Tuin Destrói Noia” e “Olha o Barulinho da Cama” — esta última estourou ainda durante a pandemia, cruzou estados e foi parar no repertório do cantor de pagodão baiano Robyssão. Do outro lado está JLZ, 22 anos, beatmaker e produtor de Águas Lindas de Goiás, entorno do Distrito Federal, que há poucos meses passou a residir na capital paulista. Ele produz há mais tempo: seis anos. E além de seus trabalhos solo, é parte do trio Weird Baile (ao lado dos DJs Vhoor e MU540), trabalhou em projetos com Linn da Quebrada e Sango e coproduziu a maior parte das faixas do novo álbum de Baco Exu do Blues, o QVVJFA?.

Dois artistas de formações e atuações profissionais distintas, mas que compartilham um referencial comum no funk de rua. No dia 20 de abril eles se encontraram para fazer som e trocar experiências. Naquele dia foi criada “Viagem ao Oculto”, faixa que abre o recém-lançado EP Illuminati, do DJ K. O encontro mostra como os produtores de música eletrônica de quebrada, apropriando-se das possibilidades tecnológicas impulsionadas pelos programas de beat (como o FL Studio), desenvolvem escritas sonoras singulares e radicalmente inovadoras. Acompanhando o processo de criação, pude ver como estamos diante de um novo modus operandi e de um nova forma de se relacionar com o fazer musical.

Mas como DJ K e JLZ se encontram? No dia 1 de abril, uma sexta-feira, fui entrevistar o DJ K para um outro projeto e também para a minha pesquisa de doutorado. Até então ele me conhecia apenas pelo meu Instagram profissional, o @ovolumemorto, pelo qual eu havia publicado algumas coisas sobre o seu som. Mas, depois de nos encontrarmos pessoalmente, ele passou a me seguir também no meu perfil pessoal. Naquela mesma noite, depois da entrevista, fui e postei stories no Brime — evento que contou com sets e shows de MU540 e Vhoor, Kyan, Febem com Fleezus e Cesvr, Tasha e Tracie, etc. E no sábado colei no Festival da Gop Tun, onde tocaram Badsista, Vhoor e FBC, Nigga Fox, Octa Octa e outros nomes da música eletrônica. Em poucos dias o DJ K me mandou mensagem de áudio: “Ô GG, você que conhece alguns DJs de eletrônica… Eu vou puxar um álbum tipo funk eletrônica. Só que eu quero colocar DJ de eletrônica de verdade no funk. Eu precisava de uns DJs bons, que sabe produzir. Sei que você conhece vários, me dá um salve. Eu queria alguém pra fazer um projetão”. Em resposta, enviei uma lista de beatmakers que tinham conexão com o trabalho dele e com o universo do funk. O DJ K se interessou por dois em especial: o JLZ e mais um nome — que também se interessou pelo feat, mas acabou não rolando por conta de agenda.

No estúdio

Feito o meio de campo, me reuni com JLZ e fomos para o home estúdio do DJ K, que fica na parte superior de uma casa de dois andares no bairro Jardim Independência, na divisa de São Bernardo e Diadema. Chegamos por volta das 11 horas para uma sessão que se esticou até umas 17h. Logo o DJ K foi mostrando alguns dos projetos em que estava trabalhando e não demorou muito para JLZ abrir o seu notebook e mostrar alguns também. K estava curioso pelas melodias criadas por JLZ, então decidiram usar uma melodia sombria de piano criada anteriormente por JLZ como base da faixa que estavam prestes a produzir. Ambos utilizam o FL Studio (software lançado em 1997 que possivelmente é o mais popular programa de beats do mundo), então JLZ só precisou exportar o projeto da música para um pen drive e daí começar a trabalhar no computador do DJ K, em parceria.

O espaço do estúdio é também o quarto onde K dorme. Ele produz com o que tem à mão, mas sempre buscando melhorar o setup de equipamentos. Não há nenhum isolamento acústico profissional (o mais perto disso é um colchão grosso, tipo de cama box, que fica atrás da porta plástica que divide o quarto da cozinha) e o microfone utilizado é um mic de mão, conectado numa placa de áudio plugada no computador. Mas até ali nenhum MC estava presente para ter sua voz captada. DJ K e JLZ começaram trabalhando a partir de acapellas de artistas da Facção Mandela, produtora fundada pelo DJ K que conta com dezenas de MCs.

O primeiro passo foi a introdução, com um sample de uma reportagem sobre a sociedade secreta dos Iluminatti, que seria o título do EP — divulgado pelo DJ K alguns dias antes em seu Instagram. Enquanto iam desenvolvendo os primeiros passos do beat, K ligou para o grupo de zap da Facção Mandela. Ninguém atendeu, então ele mandou um áudio: “Vem trabalhar, rapaziada. Tô com um DJ brabo aqui, cola rápido”. Dois responderam, mas quem encostou no estúdio, depois do almoço, foi o MC MJ — é dele a voz que ouvimos a partir da segunda metade da música. As vozes que ouvimos na primeira parte da música, cantadas dos MCs PE, Daneve e Lucks, estavam no computador do DJ K e vinham de sessões de estúdio mais antigas.

Esse ponto mostra como, ainda que ocupe um papel importante, a voz não é bem o elemento central em uma música do funk mandelão — ou, pelo menos, não é o ponto de partida para sua criação. Isso porque a música envolve toda uma engenharia de som, com várias camadas de informações sonoras, e o canto do MC passa por um trabalho de edição, recortes e modulações ao ponto de fazer parte do próprio beat. A voz passa a compor a estrutura maior da canção. O DJ opera como um técnico de futebol, organizando todos esses dados sonoros no espaço e no tempo.

Softwares e novos parâmetros do fazer musical

O belga Didier “Gol” Dambrin é o desenvolvedor do FL Studio. Mas antes de concebê-lo, ele trabalhou na criação de um game que era uma espécie de Tetris pornô. A experiência acabou auxiliando no projeto do programa de beats, que, com sua interface intuitiva, carrega uma lógica de gamificação que permite que pessoas sem ensino formal de música também criem seus sons.

“Eu não tenho nenhum background musical e acho que isso é o principal motivo pelo Fruity Loops ter deslanchado, porque não foi projetado para músicos”, contou Dambrin em entrevista ao portal Genius. Assim, o FL Studio — e programas similares — propiciaram um fazer musical que é conduzido mais sob a ordem da “montagem” do que da composição propriamente dita. Os beatmakers vão experimentando diversas possibilidades de som, utilizando inúmeros plug-ins e filtros, alterando as frequências e os tons de forma direta e mais livre, sem as amarras da teoria musical. Existe uma dinâmica quase visual nesse processo. Nos vídeos abaixo, perceba como K e JLZ não falam em tons, harmonia, escala ou nota: eles testando elementos diversos, arrastando, puxando, esticando, cortando, sobrepondo camadas de som… Os desdobramentos da música vão sendo tateados, experimentados na hora. Em certo momento, o DJ K sugere: “Sabe o que ficaria da hora? Uma escada subindo e essa aqui vai descer de novo”.

Nessa forma de trabalho, os parâmetros tradicionais da música — harmonia, melodia e ritmo — ficam em segundo plano. Não são totalmente descartados, mas estão longe de serem os princípios fundamentais, as diretrizes por onde a criação se guia. Quando chegam ao som do tuin que os agradam, depois de terem testado várias possibilidades, o DJ K observa: “Agora ficou bom. Porque tá no mesmo tom, né? Ficou certinho agora”. Ou seja: embora certos conceitos musicais ainda permaneçam presentes e válidos (como a tonalidade), eles são muito mais um resultado colateral do que um objetivo definido ou um padrão instituído. O pensamento sonoro e os fluxos da criatividade correm por outro conjunto de parâmetros musicais, acionando outras sensibilidades.

E quais são esses parâmetros? O próprio vocabulário dos DJs nos fornece pista: loop, bpm, agudo, grave… DJs de bailes de favela precisam ter uma atenção especial para as frequências sonoras. Uma música que toca no paredão precisa ter um impacto sensorial, uma força arrebatadora (em certos momentos, o DJ K, por exemplo, fala da “pressão” do grave, indicando assim um som que vai além do que se escuta pelo ouvido e manifesta-se mais como um som-fisicalidade, isto é, algo que se sente na pele, que vibra no corpo). Mas, ao mesmo tempo, é preciso não ser excessivamente agressivo para não estourar as caixas daquele sistema de som caríssimo. Naquela tarde, esse olhar cuidadoso e refinado para as frequências surge quando JLZ mostra ao DJ K como mixar faixas de áudio em um projeto do FL Studio.

Isso aconteceu quando o MC MJ chegou ao estúdio e gravou seus versos. Ao serem adicionados na música, o DJ K sentiu algo estranho no som, mas não sabia apontar exatamente o que e como solucionar o problema. JLZ então notou que havia um choque de frequências graves: “Tem grave do 808, tem o kick e o beat que tem grave mais o vocal grave. Isso vai chocar frequência. Pra paredão dá certo, mas a gente escutou aqui e você falou: ‘Tem alguma coisa errada’. Eu vim aqui e cortei o grave da melodia e da voz”, explicou, mostrando na tela do computador como fazer isso.

É importante notar que essa decisão não é tomada como uma finalidade de “corrigir”. A intenção não é deixar a música “redonda” ou dentro de um padrão do mercado musical ou coisa do tipo. O propósito é fortalecer as características inerentes do mandelão: abrir espaço para frequências graves onde elas terão mais impacto. Cortando o grave da voz e da melodia, eles podem aumentar o grave do kick, para fazer a música bater mais. Existe então uma música que está ancorada em um pensamento frequencial, que vai no DNA do som: as frequências — e como elas impactam o corpo de uma multidão no baile. Os produtores do funk inventam a sua própria gramática sonora, à revelia daquilo que a indústria da música estabelece como normas técnicas de uma boa produção. Muitas vezes, transformam aquilo que é considerado “erro” ou “aberração” (como o ruído e a distorção extrema) em recurso expressivo para materializar uma musicalidade dissidente e subversiva — pensamento que o próprio DJ K sublinhou ao lançar a música “Beat pro Rick Bonadio chorar”.

“Favela gosta de alcorão e assobio”

Um dos elementos principais do novo funk mandelão de São Paulo é o som agudo do tuin, como fica notável já no título de faixas como “Tuin Destruidor”, “Tuim Explode Noia”, “Tuim Mata Fofoqueira”, “Tuim Infernal 5.0” e outras tantas.

Tuin é o nome dado pelo funk à alucinação auditiva provocada pelo uso do lança perfume, uma das drogas mais usadas nos bailes de rua da cidade. Ele aparecia em algumas faixas do MC Bin Laden em 2014, mas nos últimos anos esse ruído agudo passou a ser mais extremo, muitas vezes durando por toda a música. Esse som surgiu de uma experimentação em sintonia com o espaço, os climas e as ações dos bailes. É um fazer artístico experimental intimamente ligado ao corpo e às tecnologias dos estúdios e paredões.

Durante a feitura de “Illuminati”, pude perceber como o conhecimento profundo sobre o ambiente dos bailes lapida a música do DJ K. A começar pela constante mudança de beats, tanto no ritmo quanto na sonoridade. “É para chamar atenção da galera no baile. Se for um beat só, aquela coisa repetitiva, a galera já tira no meio”, conta ele, explicando que isso também foi influência do funk de Belo Horizonte, que já trabalhava com muitas variações de beats em uma mesma música.

Outro momento em que se percebe como o conhecimento dos bailes constitui a música está aos 2:04, quando ouvimos uma prévia de um som que o funk chama de beat passarinho (também conhecido como beat assobio), seguida pelo sample de uma reportagem sobre uma garota que sumiu após um baile funk. “Tem duas coisas que favela gosta: o som do alcorão, dos árabes cantando, e som de passarinho”, explica K. Ao colocar pequenas prévias destes sons antes de sua entrada triunfal, ele dá tempo para as pessoas na festa prepararem o celular. “A galera sabe que vai vir o beat de passarinho, aí já vai filmar. Todo mundo vai querer filmar, ligar o flash… Então eu vou botar prévia aqui”.

Construindo uma musicalidade que conecta e embaralha o corpo-movimento e ciência das frequências da matéria-som, os produtores pavimentam caminhos para outras possibilidades de criar e de conceber o mundo a partir do som. Muito mais que um engenhoso artesanato, vemos práticas sonoras renovadoras que nascem menos de uma racionalidade metódica que de um senso de movimento e improvisação.

Em certa altura da tarde, eu, JLZ e DJ K falamos sobre uma sensação de saco cheio daquele papo “o funk sofre preconceito, é música que representa a favela e tem que ser respeitada”. Em outras palavras, um esgotamento na insistência em temas como a criminalização do funk e como a pauta gera mais interesse e atenção da grande mídia do que a riqueza musical e as transformações estéticas do funk. O fato de que o discurso sobre o preconceito sofrido pelo funk (equivalente a obviedades como “racismo é ruim e mulheres são pessoas que devem ser respeitadas”) circule muito mais do que as discussões sobre o valor artístico do funk mostra como o estatuto da arte ainda é dominado e bem cercado pela elite branca deste país. “Parece que é muito difícil admitir que o som é foda”, comentrou JLZ. “É um vitimismo, né? Parece que os caras querem colocar a gente sempre no papel de vítima”, completou DJ K. A despeito de todas as violências, opressões e dificuldades, por todo Brasil, em pequenos estúdios caseiros como aquele, artistas da quebrada estão continuamente renovando a música, produzindo saltos de inventividade que levam a música eletrônica periférica sempre a rumos inesperados. A imaginação radical das quebradas parece dizer: não deixaremos que a densidade da História e os estigmas sociais determinem meu destino — antes de tudo, existimos aqui.

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ARTISTA: JLZ