Uma década de selo RISCO

Responsável por lançar artistas como O Terno e Luiza Lian, o selo completa 10 anos com percepção madura sobre o mercado e pronto para alçar novos voos

Loading

Fotos: Letícia Moreira/Revista Brasileiros

Em uma das ruas do Sumaré, entre duas árvores, vê-se o topo amarelado de uma casa e um muro tomado por trepadeiras e espadas de São Jorge. Ao passar pela entrada, seguindo a lateral esquerda, um corredor guia até o interior da residência, onde há um terraço amplo, os fundos da cozinha principal, uma edícula com dois andares e um depósito de vinis. São nesses espaçosos metros quadrados que se registram os 10 anos de história do Selo RISCO.

A casa, que se apresenta como um respiro em meio ao empilhamento de concreto que existe em São Paulo, de certa forma, também se assemelha às funções do selo independente – em meio à lógica de uma indústria que assenta lançamentos um em cima do outro. Foi nessa amarela e vibrante fachada que se tornaram físicos os sonhos de muitos artistas como O Terno, Charlie e os Marretas, Luiza Lian, Grand Bazaar, Memórias de um Caramujo, Caio Falcão e um Bando, Mojo Workers e Noite Torta.

Tudo isso foi possível pelo nascimento, quase simultâneo, do Estúdio Canoa e do Selo RISCO. O primeiro, encabeçado por Gui Jesus Toledo, e o segundo, inicialmente, por toda a trupe que gravava os sons com o produtor e, então sócio, Guilherme Giraldi. “Foi um movimento bem orgânico, no sentido de que eu não estava coordenando nada, mas eu estava gravando tudo o que estava acontecendo naquele momento: as primeiras coisas do O Terno, o primeiro disco da Luiza Lian, o Memórias de um Caramujo, Charlie e os Marretas…”, conta Todelo, produtor e engenheiro de som, no aconchegante terraço da casa.

As primeiras demos das músicas do Charlie e os Marretas ainda chegaram a ser feitas no home studio que ele havia criado na casa dos pais. Mas não era o pano de fundo ideal. O contexto, então, contribuiu para a saída dele da produtora na qual ele trabalhava na época para abrir um estúdio de música – e, futuramente, desenvolver o RISCO ao lado de Giraldi, que tocava baixo no Charlie e os Marretas. “O Gui foi ponte fundamental para que tudo acontecesse. Ele conhecia bastante gente e foi trazendo essas conexões para o selo”.

Gui Jesus Toledo (Foto: Fernando Banzi)

“Hoje em dia, acima de tudo, procuramos coisas que expandem os limites, as bordas. É raro lançarmos algo genérico. São trabalhos muito específicos, de uma corrente própria, autoral, daquele artista” – Gui Jesus Toledo

No boca a boca, de artista em artista, todos eles acabaram, em algum momento, se reunindo no endereço que os sócios escolheram como casa – não só do selo ou do estúdio, mas também como a deles. Em entrevista ao quadro Encarte, disponível no canal do YouTube do Monkeybuzz, Giraldi comenta que os todos os equipamentos de estúdio nem haviam chegado, quando os Marretas entraram para gravar o primeiro disco. O Terno também cresceu impulsionado pela dupla.

Ao longo da década, muitíssimas pessoas passaram por lá em gravações, festas, reuniões. “É aquele começo de carreira que não dá nem para pagar uma hora mínima em um estúdio. Então, fiz mega parcerias. Meu intuito era aprender a gravar e a produzir também, sabe?”, explica Toledo, que colocava em prática o que havia aprendido em um curso do Instituto de Áudio e Vídeo, IAV, em São Paulo. Nesse ritmo de sincronicidade entre os artistas que habitavam o Canoa, as peças se juntaram. Entre 2012 a 2014, intervalo de tempo que marca a distância da criação do estúdio e a primeira leva do selo, a casa já abrigava oito bandas em constantes trocas artísticas.

“O selo era quase como uma grande família com projetos que falavam entre si” – Francine Ramos

“O selo era quase como uma grande família com projetos que falavam entre si”, conta Francine Ramos, que lidera a comunicação para imprensa do RISCO desde 2014. A jornalista relembra do trânsito dos artistas pela casa – e pelos trabalhos: “O Terno era praticamente a banda da Luiza Lian no primeiro disco, com o Charles na bateria, O Charlie & Os Marretas tinha o Biel Basile, que fez parte da Memórias de um Caramujo e que depois iria assumir as baquetas d’O Terno. O André Vac fez parte dos Marretas, do Memórias e até hoje faz parte do Grand Bazaar, que reúne boa parte do selo”.

No começo, a confusão se era coletivo, selo ou movimento foi geral e, em certo ponto, até estratégica, porque gerou um efeito positivo para a imprensa. “Teve um churrasco específico nesse quintal em que postamos uma foto e, no dia seguinte, ligou uma repórter perguntando o que a gente estava fazendo. Foi quando saiu a primeira matéria com a foto do O Terno, na frente de casa, falando um pouco mais sobre a cena”, relembra Toledo.

A banda formada por Tim Bernardes, Guilherme D’Almeida e Gabriel Basile estava ficando quente com o primeiro disco homônimo e a música “Ai, Ai, Como Eu Me Iludo”, mas não havia tido inserções dentro da grande mídia, a ponto de movimentar junto o corpo do selo. Depois desse aceno, algumas coisas mudaram.

O Vinil

Além da coletividade cristalina como um pilar do selo, a prensagem dos discos foi fundamental para a história do RISCO. Apaixonados por vinis, para além da estética e do ritual que a audição exige, Toledo e Giraldi propuseram aos artistas que realizassem os lançamentos no formato de LP. Inicialmente, os custos e lucros seriam divididos. Na época, um contato da dupla oferecia a possibilidade de prensar os vinis na República Tcheca e trazer para o Brasil por um preço mais acessível. A ideia era poder, pelo menos, materializar os trabalhos dos artistas – o que se estendeu não só no formato, mas na intenção do selo de perpetuar as obras, com o passar dos anos. Em 2014, vêm, então, os dois discos d’O Terno – 66 (2012), O Terno (2014) – o compacto Tic Tac/Harmonium, o disco homônimo do Charlie e os Marretas, e o Cheio de Gente, do Memórias de um Caramujo.

Com a mídia física em mãos, o selo partiu para um novo momento, que coincide com a chegada do João Bagdadi. O atual sócio-diretor do RISCO aparece na trajetória, inicialmente, com o intuito de prestar uma consultoria. Mas, pela afinidade que teve com os sócios, Bagdadi mergulhou na cena independente de São Paulo. Ele vinha de outro background: desde o colegial, tomou gosto por organizar festas até se ver promovendo eventos no litoral paulista com artistas do mainstream brasileiro como Ivete Sangalo, Chiclete com Banana, Zeca Pagodinho, entre outros.

Sentados no terraço, os dois atuais sócios relembram do período de estruturação como selo com a chegada de Bagdadi, em 2015. Eles contam que a ideia de coletivo já havia sido deixada para trás – embora a união entre os artistas não tenha sido rompida –, os negócios, contudo, ganharam uma nova visão. “Chego com uma perspectiva de questionar essa operação de ficar só prensando os discos, com tudo o que estava acontecendo. ‘Será que vale a pena?’. É quando a gente começa um exercício de criação de um plano de negócio que vem para formalização da empresa, abrir CNPJ…”, relembra Bagdadi.

Todelo conta que, nos anos seguintes, a partir da sociedade, foi possível realizar lançamentos mais organizados, com estratégias e planejamento para os artistas. Nessa conta, entram novas frentes no selo, como a operação de loja com distribuição digital e merchandising das bandas, com venda de itens como camisetas e canecas. “Como na época eu fazia os sons d’O Terno, eu ia para a estrada e fazia a lojinha, recolhia, pagava eles. Pr’O Terno, os Marretas e Luiza, foi crucial ter essa operação”, explica Toledo. Todos os itens eram concentrados em uma única loja, com merch dos artistas do casting – e, inclusive, do próprio selo. “As bandas investiam e desenvolviam juntas, a gente manufaturava, vendia e depois dividia os lucros”, conta Bagdadi.

(Foto: Felipe Giubilei)

RISCO #01

Em paralelo à novidade do e-commerce, surgiu a gravação do primeiro disco original, RISCO #01, gravado e mixado no Red Bull Studio SP, lançado em 2016. Aquele era um bom momento para ampliar o alcance dos artistas e das obras lançadas até então pelo RISCO. Foi quando as bandas do casting criaram, com total liberdade, as próprias versões das composições dos companheiros do selo. Luiza Lian, em entrevista, cita com carinho da ocasião: “Foi um ambiente muito rico de troca”.

Cada um dos artistas escolheu a música na qual gostaria de trabalhar, o que nos rendeu a seguinte setlist: O Terno regravando “Ávida Dúvida”, do Memórias de Um Caramujo; Charlie e os Marretas com “Yaz Dir Diri”, de Grand Bazaar; Luiza Lian cantando “De Manhã”, de Caio Falcão e Um Bando; Memórias de um Caramujo regravando “Linda, Linda”, de Luiza Lian; Grand Bazaar com “Whiskey is Over”, do Mojo Workers; Caio Falcão e Um Bando com “Sem Desencantos”, do Noite Torta; Mojo Workers com “Chegou a Hora”, do Charlie e os Marretas; e o Noite Torta cantando “Bote ao Contrário”, d’O Terno.

A coletânea ainda teve uma música inédita de Gabriel Milliet, do Memórias de um Caramujo e Grand Bazaar, produzida e gravada coletivamente por vários integrantes do selo. O show de lançamento foi realizado no Centro Cultural São Paulo (CCSP) com a participação das bandas. Naquele momento, o selo já havia mudado de tamanho e expandido sua notoriedade.

Curadoria e expansão

“O movimento era expandir. O nosso intuito nunca foi ser um selo paulistano, mas, sim, um selo de música brasileira”, explica Toledo. Em 2017, por amigos e conhecidos, chega Mari Romano, cantora, compositora e instrumentista, do Rio de Janeiro, para mais um lançamento sob a alçada do selo. “A Mari foi um movimento interessante, porque abriu uma rede de outros artistas, intérpretes e produtores que também foram se aproximando, sabe?”.

Conforme a palavra do selo era espalhada, mais e-mails chegavam à caixa de entrada – e a dinâmica se mantém. “É meio loucura, mas ouço tudo que chega, porque penso que ali pode ter uma pepita de ouro ali e eu não ouvi”, complementa o produtor e engenheiro de som, que desde a adolescência exerce o papel de buscar por novas músicas e mostrar para os amigos. Com o selo, foi o momento de ver suas apostas dando certo.

João Bagdadi

“Lançamos o que a gente quer realmente propagar como mensagem, estética. O RISCO trabalha com artistas, não necessariamente com personalidades. Acima de tudo, trabalhamos com arte, vozes e discursos que a gente acredita na potência” – João Bagdadi

“Hoje em dia, acima de tudo, procuramos coisas que expandem os limites, as bordas. É raro lançarmos algo genérico. São trabalhos muito específicos, de uma corrente própria, autoral, daquele artista”, afirma.

Luiza Lian, que entrou no casting em 2015, é um exemplo enaltecido pelos sócios, devido à parceria que se estende desde o lançamento do primeiro disco homônimo da cantora. Com ela, é evidente a articulação do selo para além da simples distribuição das músicas, o que revela uma intimidade criativa mútua entre os envolvidos – presente desde a convergência do Canoa com o RISCO.

O lançamento de Oyá Tempo, de 2017, é visto como fruto dessa parceria entre o selo e a cantora. “Foi bom porque foi um momento de ser um ouvido parceiro do artista. Não fazemos agenciamento de carreira, mas o nosso trabalho fonográfico está intimamente ligado a isso. Então, dar umas provocadas, entender para onde direciona, porque, como… E tentar fazer pontes de conexão para otimizar a ideia do artista”, explica Toledo.

Com a mesma reciprocidade, Lian comenta suas percepções sobre a atuação do selo: “Sinto que tem muito esse papel de ajudar a construir uma carreira sólida, fazer um início e berço sólido para o artista lançar o seu trabalho de forma independente”. O que coloca o RISCO em uma posição fundamental, articulada e próspera para a cena que esses artistas compõem.

“Sinto que [o selo] tem muito esse papel de ajudar a construir uma carreira sólida, fazer um início e berço sólido para o artista lançar o seu trabalho de forma independente” – Luiza Lian

“Lançamos o que a gente quer realmente propagar como mensagem, estética. O RISCO trabalha com artistas, não necessariamente com personalidades. Acima de tudo, trabalhamos com arte, vozes e discursos que a gente acredita na potência”, acrescenta Bagdadi. “Desde sempre, é a potência do fonograma”, conclui Toledo. A partir desse propósito, chegam também outros artistas como Ana Frango Elétrico, Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, Maria Beraldo, Giovani Cidreira, Mustache e os Apaches e tantos outros.

Nas últimas quatro edições do Prêmio Multishow, o selo teve artistas indicados e concorrendo na categoria Revelação. “A Ana é uma artista que a gente não lançou o primeiro disco [Mormaço Queima, 2018], foi algo que ouvi pelo algoritmo do YouTube e fui atrás. Era o melhor [lançamento] do ano, de longe”, relembra Toledo, com empolgação, o primeiro contato com a artista que já ganhou indicação no Grammy Latino com Little Electric Chicken Heart, álbum lançado posteriormente em parceria com o selo. “Foi maravilhoso, uma experiência muito legal, gratificante e positiva”, acrescenta. A rodagem com o ao vivo do disco, contudo, foi interrompida pela pandemia, em 2020. O momento foi de reinvenção para todos da indústria musical, como a gente bem lembra, e para o selo não foi diferente.

Quando retomaram as atividades, viram os projetos que tinham em mãos e, um deles, era o Me Chama de Gato Que Eu Sou Sua. “O Mormaço já tinha sido muito interessante e o Little ganhou o mundo. É muito do nosso esforço, das conexões que temos, mas também foi orgânico e passivo, porque quando você coloca uma música no mundo, ela não tem mais dono, né? Vai batendo por onde ou em quem for. No caso da Ana, a gente sentiu que precisava dar esse passo”. Na entrevista, ele brinca que não sabia exatamente qual era esse passo, mas foi o momento ideal para puxar um parceiro internacional. O disco então saiu também pelos selos Mr Bongo (Inglaterra) e Think! Records (Japão). “Foi interessante, porque bandas internacionais já estavam procurando a gente”, complementa. Diogo Strausz, da França, e Mariá Portugal, da Alemanha, são alguns dos artistas internacionais que já lançaram trabalhos pelo selo.

“O movimento era expandir. O nosso intuito nunca foi ser um selo paulistano, mas, sim, um selo de música brasileira”– Gui Jesus Toledo

Uma paisagem pra você entrar e fazer sua viagem

Agora colecionando 10 anos de experiência no mercado, o RISCO aprimora todas as frentes que desejou ter – e, ao que tudo indica, se movimenta para algo ainda maior. Com mais de 70 obras lançadas, que incluem as prensagens de vinis, CDs e mídias disponíveis em plataformas digitais, o foco – e o desafio – é seguir com fôlego para que esses artistas independentes continuem produzindo pelas próximas décadas.

“O que mais vemos é gente talentosa caindo no meio do caminho. A dificuldade não é como sustentar um festival, uma produtora de eventos ou uma empresa na indústria da música. Mas como criar sustentabilidade para esses artistas com pensamentos autônomos, que vão criar obras que estimulem o público”, aponta Bagdadi, que, com a guinada do selo, mergulhou de cabeça em direitos autorais e licenciamento de obras. Uma ponta onipresente no RISCO, que garante a perenidade das obras que chegam até eles – e se conecta com a ambição inicial que apareceu com a ideia de prensar os discos. “A gente licencia obras e fonogramas e negociamos o que está ligado à gestão de direitos das gravações, obras, imagem, voz, performance… Nas outras frentes, vão ter outros agentes atuando, se não indicados pelo RISCO, pelo artista. A gente tenta focar e entende-se que a resolução do problema tem que acontecer, porque é aqui que está a longevidade”, esclarece.

Embora tudo seja feito para durar, contratos fixos não são um hábito do selo. “O RISCO não tem contrato futuro com nenhum artista. Qualquer um deles pode lançar a qualquer momento, qualquer coisa, com qualquer gravadora. Não existe prisão. É uma troca, uma relação que se constrói baseada na confiança”, explica Bagdadi. A mesma confiança que reuniu oito bandas em há uma década.

Hoje, a casa amarela descansa da agitação inicial do selo, mas segue como referência da sede. Agora, ela se divide entre o lado do descanso da família de Toledo e as corridas alegres da Pipa, cachorrinha carismática que me recebeu no terraço, e do outro, a edícula que segue abrigando o primeiro e o segundo andar do Estúdio Canoa com diversos instrumentos, caixas de som, sofá, banquinhos, mesas de produção – e uma penca de vinis. Todos com as marcas do tempo, como parte da história (viva) da música independente no Brasil.

Loading