Seria cômico se não fosse trágico

Destrinchando as faixas de “Tragicomic Remixes”, produtores falam sobre as incertezas atuais e o poder curativo de criar em meio ao caos

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Quando o álbum Tragicomic foi lançado em 2019, a terra natal da DJ e produtora Valesuchi passava por uma situação turbulenta. Na época, o Chile estava mergulhado em uma onda de protestos contra a privatização generalizada, o aumento das tarifas de metrô, a desigualdade social e diversas políticas públicas que impulsionavam as revoltas. Hoje, 31 de março, dia do lançamento de remixes do mesmo Tragicomic (via MAMBArec), a angústia e a incerteza tomam conta do mundo por conta da calamidade da Covid-19 e do isolamento social – ainda sem data para terminar. Em ambas as circunstâncias, aquele mesmo sentimento paradoxal paira sobre a densidade e a fluidez do tempo: sentir-se impaciente X ter paciência e (aprender a) lidar com as contradições. Será que somos os responsáveis? A crença inabalável de que “tudo vai passar” tem lugar? Podemos acreditar? Ou simplesmente devemos esperar passivamente? Conseguimos responder? Apenas refletir, talvez? 

Como Valesuchi mesmo aponta: “é tudo sobre as tragédias privadas e públicas, umas mais complicadas, que exigem os nossos esforços” (…) “Nesse momento histórico e histérico de conexões totais, de distopia neoliberal global em ditaduras democráticas, a sede de encontro cresce.” O resultado sonoro de Tragicomic Remixes é, naturalmente, a combinação do universo de cada artista e a busca por respostas para essas tragédias algumas cômicas, outras nem tanto.

Com a distância entre Rio de Janeiro, São Paulo, Medellín e Santiago, batemos um papo exclusivo com Valesuchi e os sete produtores responsáveis pelo remix de cada faixa: Os Fita, Thingamajicks, Diegors, Kakubo, Julianna e Mari Herzer. A conversa abordou o processo criativo de cada um e, como não poderia deixar de ser, passou pelos momentos de incertezas e pela iminência do caos — se é que ele já não chegou.

1. I M P E R M A N E N C E – O S  F I T A  R E M I X  (BRA)

Abel Duarte: Esse foi o primeiro trabalho de remix que produzimos, então teve a novidade e o desafio de criar a partir de uma faixa de outra pessoa. A Valesuchi é uma artista que admiramos muito, estamos sempre acompanhando os sets dela, ficamos muito felizes quando nos convidou. Além disso, foi um momento que, colocando tudo que já produzimos juntos em perspectiva, pudemos perceber o quanto nosso trabalho tinha crescido.

Cainã Bomilcar: Uma das coisas legais de se trabalhar com remixes é o desafio de tentar compor com elementos que você não concebeu e métodos que não idealizou. Quando começo qualquer faixa, vou atrás desses elementos ou métodos que se tornam um mote para as criações. Normalmente, nos meus trabalhos de produção musical, as ideias se desenrolam a partir desses motes, sejam eles samples; meios de composição – como é o caso do trabalho com Radiolixo – ou até letras e textos – como nas faixas do Tantão e Os Fita.

Várias coisas mudaram na versão remixada. Primeiro de tudo, aceleramos o BPM e editamos a voz usando apenas algumas palavras e picotes, como samples rítmicos. Construímos outros beats a partir dos samples originais, mas de forma bem mais fragmentada. Seguimos nossa pegada de produção com movimentos mais frenéticos, que foge um pouco da estética do álbum original. Além disso, a vontade de tentar se aproximar do público da Vale, que é o das pistas de dança, também foi considerado como um direcionamento para criar o clima da faixa.

AD: [Sobre o título da faixa] Impermanência e Morte parecem ser as únicas ideias em que podemos nos agarrar, são as únicas certezas que temos, independente do momento que estamos.

CB: O texto fala sobre conceitos pilares do budismo: impermanência, sofrimento, ausência do ego e morte. Acho muito válido para nós do ocidente entrar em contato com essas outras verdades, pois elas mostram novas formas de enxergar e sobreviver no mundo. Acredito que levaríamos uma vida menos culposa se nos permitíssemos ser impermanentes, se compreendêssemos o sofrimento e a morte como parte da vida e, principalmente, se praticássemos a percepção dos excessos do nosso ego.

2. D E A T H  – T H I N G A M A J I C K S  R E M I X  (BRA)

Thingamajicks: Remixar “Death” foi um processo catártico e, de certa maneira, improvisado. Em termos sonoros, a faixa acabou se distanciando bastante, mas a ideia sempre foi tentar manter as sensações e mood da original.

A morte pode representar uma ruptura transcendental. A arte pode nos ajudar a experienciar momentos de transição físicos e até metafísicos.

3. H U M O U R  – D I E G O R S  R E M I X (CL)

Diegors: Remixar essa faixa foi um desafio bem motivador. A Valesuchi é uma amiga que conheço há muito tempo e que tenho visto se desenvolver como artista. Eu me inspirei mais nas ideias rítmicas da música para criar outras e fui adicionando camadas de processos de dub, distorções e filtros. Algumas coisas também foram surgindo na minha cabeça… como o sample de “Funky Drummer”.

“Humour” é um nome muito sugestivo. Em um breve momento pensei em adicionar um sample de algo engraçado, mas me abstive. Gostei finalmente do jogo entre o nome e o obscuro do som final.

“Pedir um remix é um convite muito íntimo ao meu ver. É uma oferenda minha para eles, para nos comunicarmos de um jeito novo, para criarmos uma nova faixa que vem deles e de mim ao mesmo tempo. É emocionante, é uma obra à parte.”— Valesuchi

4. E G O L E S S N E S S  – K A K U B O  R E M I X  (BRA)

Kakubo: A primeira vez que soube sobre a Valesuchi foi pelo lineup do festival Sónar em 2015 e rolou uma identificação instantânea desde então. Nessa época, só sondava algumas coisas em produção, trabalhar com música ainda era um sonho bem fantasioso. Por sorte, há uns 2 anos, a gente se conheceu. Logo de cara, ela me aconselhou sobre ser mulher nesse meio, aspectos que eu deveria prestar atenção e desenvolver, ela é como se fosse uma madrinha para mim. Também participei do projeto gráfico do álbum, foram meses me relacionando com essas músicas junto com as meninas da MAMBArec. Existe muito significado por trás de cada coisa e ver o resultado do todo é gratificante, está tudo muito lindo. 

Meu processo de produção começou com uma imersão em estúdio gerando elementos para o remix. Já a finalização e arranjo foram por etapas – uma parte na Bahia de frente pro mar, bons tempos! O procedimento foi bem investigativo, não tinha nenhuma referência e quase todos os samples que usei foram extraídos da própria música. Escolhi alguns trechos que considerava a alma da faixa, deixei-os intactos e fui cortando/distorcendo outras partes e relacionando com essas. Tem um elemento no remix que era uma bateria originalmente e no fim soou uma corneta! Isso me deixa empolgada com essa música. A parte mais complexa foi o tratamento e mixagem. Por conta da manipulação, muita coisa perde resolução, então tive que adicionar alguns sons ‘fantasmas’, sobrepor baterias e colocar frequências extras (principalmente graves) para não perder a funcionalidade.

A música original nos leva por um percurso lento para as descobertas, são frases longas de sons hipnóticos e, de repente, você está em momentos sublimes e outras vezes melancólicos. Tem uma carga de sentimento e, na base, um pulso bruto, uma energia mais primitiva. Eu gostei bastante desse contraste e acho que foi isso que considerei como essência.

A faixa foi produzida no final do ano passado, mas acho que acaba fazendo sentido que ela venha a público nesse momento. Os nomes das músicas de Tragicomic fazem referência a estudos do Dharma. Egolessness no budismo significa a desconstrução do “eu”, de forma a tentarmos viver pela espiritualidade a experiência humana como todo, entendendo que nossas ações reagem ao universo e que nossa energia é coletiva. No momento de vida em que estava trabalhando com esse projeto, era o fim de ciclo longo de resoluções e iluminações de conflitos, um momento de enfrentamento bem ruim, mas que me fortaleceu muito. Espero que seja assim o nosso futuro próximo, que sirva para aprender algo, que a gente consiga ter clareza e empatia como coletivo e também atenção para os nossos processos internos e saúde mental. Boa sorte nessa quarentena pra nós, que ainda possamos ser sonhadores durante os próximos meses. 

5. S U F F E R I N G  – J U L I A N N A  R E M I X  (COL)

Julianna: Foi muito especial quando a Vale me pediu para remixar. Sempre que recebo esse tipo de convite, eu fico um pouco nervosa, ainda mais quando você admira as pessoas com quem trabalha. Desfrutei muito ao fazê-lo.

A principal mudança que fiz foi a base rítmica para uma coisa que chamo de “Nalgotechno” (a tradução para o português seria bundatechno). Ao produzir uma faixa, o ritmo dos drums é a minha fascinação e, basicamente, a intenção não vai além de mover a bunda. A versão original é como uma viagem de mil emoções ao que a experiência humana se reduz, eu só quis intensificá-la. Como é possível conseguir dançar e ao mesmo tempo mergulhar na profundidade de um synth?

Quando trabalhei no projeto eu estava em um momento muito profundo de mudanças. Foi um desafio. Costumo ser um pouco lenta e insegura no meu processo. O tal sofrimento foi traduzido em ter que lidar emocionalmente com a necessidade pessoal de fazer tudo perfeito, mas quando me libertei, em dois dias já tinha finalizado. Esse motivo também deixou tudo mais especial. Agradeço muito ao Merino que me ajudou com a mixagem.

6. P E A C E  – M A R I  H E R Z E R  R E M I X (BRA)

Mari Herzer: “Peace” é bem minimalista, são seis peças harmônicas e nenhuma bateria. Achei isso bem proveitoso, de forma que o remix conduza a um novo sentimento que deriva da música original. Ainda que mantendo as peças, eu as modifiquei bastante, também acrescentei algumas camadas de som para que fique indefinido quais instrumentos são, de fato, da música original. Trabalhando assim, consigo construir narrativas musicais que trazem um pouco do que acontece na minha vivência e na da comunidade na qual estou inserida.

O caos precede a paz. As ferramentas que viabilizam reformas sociais e revoluções são sempre caóticas e agudas. Precisam de luta e muitos empurrões para acontecer. Sinto que minha versão ficou caótica e urgente sonoramente, talvez uma forma de viabilizar a paz no fim das contas.

O disco em uma palavra
Mari Herzer: Humano
Julianna: Viver
Diegors: Coerência

 

Como a arte, a produção podem ser um escape pra esse momento de tantas incertezas?

Valesuchi: Produção é uma ferramenta para ir fundo, para traduzir a incerteza, a novidade da vertigem que estamos vivenciando. Sempre foi assim, só que agora o sentido da “urgência” mudou completamente. A produtividade, a nossa psique, o afastamento, o que é realmente íntimo e como o tempo está passando… Tudo está mudando, tudo está se ressignificando. A criação vai ter que vir de um senso mais profundo, é a hora de dar o nosso melhor, seja qual for o nosso talento.

Cainã Bomilcar (Os Fita) : Tudo depende de como você leva a produção musical na sua vida. No meu caso, ela é uma profissão diária, pois além de músico e produtor, sou técnico de som e vivo em contato com muitos outros artistas em seus momentos de trabalho. E, o que eu vejo em geral, é muita ralação por parte de colegas da música. No momento em que vivemos, de crise e recessão nas rotinas de trabalho, pra mim é difícil interpretar minha profissão como um escape. Prefiro cozinhar.

Abel Duarte (Os Fita): Não sei. Acho que não tem como escapar, aliás, não deveríamos. Precisamos encarar de frente todos esses problemas e incertezas para construirmos algo melhor. 

Diegors: Mais que um escape. Desde criança, a arte faz parte da minha vida. Ela me ajuda a entender o mundo, apreciar a natureza e a me conhecer. É claro que um bom filme, um livro, ou um disco podem ser o melhor passatempo, mas também podem te levar para momentos de entendimento mais profundo.

Kakubo: Está cada vez mais difícil de achar momentos de escape, mas a minha rotina de trabalhar com arte tem ajudado a lidar melhor com confinamento e ansiedade — já que sempre trabalhei de casa e tenho longos períodos de imersão. Mas o momento atual é muito assustador. Tenho tentado me manter na mesma rotina de produtividade e alimentando projetos futuros para não perder a energia e inspiração nesse contexto. Nos últimos dias venho estudando formas via rede para trocas mais substanciosas e, se possível, fazer intercâmbios culturais, compartilhar conhecimento, ajudar na formação de novos artistas e achar formatos auto suficientes para o trabalho independente. 

Julianna: Claro que sim! A gente não tem nem o poder, nem o dinheiro, nem as armas, nem as vacinas, mas, sim, as nossas convicções e lutas representadas através disso. Seja uma melodia de um sintetizador ou uma drum machine, mesmo que um desenho ou uma fotografia. É agora mais do que nunca! Apesar do bloqueio tão inacreditável que estamos tendo, criar é para curar… pelo menos as nossas ansiedades.

Mari Herzer: A composição de música eletrônica é uma ferramenta de posicionamento político e escape social muito poderosa pra mim. Falo de música eletrônica especificamente, pois as possibilidades sonoras são infinitas, independente do instrumento eletrônico usado. Existe muito potencial de comunicação por meio da estética eletrônica, o sintetizador pode fazer qualquer tipo de som e com os efeitos dá pra transformar mais ainda, viabilizando a construção dessa geografia sonora que existe dentro de uma faixa. Eu costumo fazer músicas caóticas, assim como muitas vezes me sinto. É uma forma de conversar comigo mesma e com o outro, transmitindo esse alívio reparador da conversa para o ouvinte.

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