Nem só de hits “chiclete” executados à máxima perfeição é feita a música coreana. Aparentemente, o próximo gênero produzido pelo país a dominar o mundo é o K-Hip Hop que desembarcou por lá no final dos anos 1980 e, até então, tem crescido assustadoramente. Hoje, o Hip Hop da Coreia está entre os ritmos mais importantes tocados ali e os sul-coreanos parecem mais empolgados do que nunca em mergulhar nessa sonoridade.
Para entender essa crescente, no entanto, é preciso voltar no tempo. Mais especificamente para 1945, quando a península coreana foi dividida entre Norte e Sul. Foi aí que, pela primeira vez, os sul-coreanos tiveram contato com a cultura ocidental. A música Pop se infiltrou na paisagem do pós-guerra com as tropas norte-americanas que permaneceram ali depois dos conflitos. O Hip Hop, contudo, demorou um pouco mais para chegar lá. A culpa é do presidente militar Park Chung-hee que, até 1988, proibiu a importação de produtos culturais de outros países. Aproveitando a onda dos Jogos Olímpicos de Seul, o país abriu-se novamente e, assim, finalmente, o Rap, o R&B e o Hip Hop se espalharam pelos ouvidos sul-coreanos.
O primeiro dia de aula
O pontapé inicial do Hip Hop produzido in loco (o chamado K-Hip Hop), curiosamente, foi dado por um roqueiro. Hong Seo-beom foi um dos primeiros a fazer algum registro do gênero em uma de suas músicas. A faixa em questão – “Sat-gat” – não foi um sucesso, mas, pelo menos, entrou para a história. O lado bom é que uma vez que as portas se abriram, outros não demoraram a investir na tendência. É o caso do jovem Hyun Jin-young, um dos primeiros artistas a serem agenciados pelo que posteriormente se tornaria uma das produtoras mais gigantescas do K-Pop, a SM Entertainment. À princípio, ele seria só um dançarino de apoio dentro da agência. Mas, em 1990, acabou rolando a sua estreia oficial que – assim como a primeira investida do Hip Hop local –, não funcionou bem para o mercado. Mesmo assim, com o tempo, a novidade foi soando cada vez menos estranha aos ouvintes e seu retorno aos palcos rendeu uma série de ótimos hits. Destaque, inclusive, para “You Are In My Unclear Memory” cujas apresentações já namoravam um visual mais urbano. Depois disso, o sucesso consumiu Hyun. Ele se afundou em dívidas e, em 1993, foi preso por porte ilegal de drogas. A péssima conduta, aliás, foi um dos fatores que influenciaram o CEO da SM a reprogramar o foco da agência que, futuramente, viria a se tornar a casa de alguns dos maiores idols de K-Pop.
Detenção e semana de provas
Quem ajudou o K-Hip Hop a reconquistar a sua relevância no cenário local foi o importantíssimo trio Seo Taiji and Boys – precursores do formato boyband que, hoje, é uma febre mundial. O single “I Know”, de 1992, era extremamente inspirado pelo Hip Hop norte-americano e, assim, abriu-se novamente espaço para que as futuras gerações de artistas pudessem brincar com o gênero também. Quando a internet chegou, nomes como Drunken Tiger e Jinusean despontaram como alguns dos músicos dedicados 100% ao Hip Hop que conseguiram atingir o mainstream.
Entretanto, é claro, nem tudo são flores. Fazer rimas no próprio idioma não é uma tarefa fácil para os sul-coreanos. A estrutura gramatical da língua oficial, muitas vezes, impede que as palavras tenham sonoridades que se encaixem perfeitamente como no inglês. Não é como se essa dificuldade impedisse a produção de Rap nacional, mas quem assinava as letras, sem dúvida, passava por uma dor de cabeça tremenda. Tudo isso só foi mudar com o trabalho do talentoso Verbal Jint, obcecado por Hip Hop desde a década de 1980. Ele passou anos desenvolvendo um método de rimas adequado para o coreano e, surpreendentemente, conseguiu chegar em um resultado eficaz. Não à toa, seu EP de estreia, Modern Rhymes (2001) foi um estouro e, com a ajuda da fama, essa técnica se espalhou pelo país. Não é raro, inclusive, vê-lo creditado em grandes produções como acontece na faixa “태연 ‘I” da cantora Taenyon.
Quem é quem no baile de formatura?
De modo geral, o K-Hip Hop é entendido como um colega da faceta mais rebelde do Pop da Coreia. Antigamente, pode até ser que eles não se entendessem muito bem, mas agora, eles andam lado a lado e em boa sintonia. Os exemplos desse combo são muitos. G-Dragon, para começar, faz parte da enorme boyband BIGBANG e é o responsável pelos “raplines” do grupo. Em seu disco solo Coup D’Etat (2013), ele até tem uma faixa com participação de Missy Elliott (“Niliria”). Outro caso é o de Zico que já vinha ganhando espaço no cenário independente até juntar-se ao grupo Block B, em 2011. Seu EP Television (2017) está entre seus trabalhos mais respeitados e é sinônimo do que se entende pelo bom K-Hip Hop contemporâneo. O mesmo vale para RM (do gigante BTS que, há pouco, esteve no Brasil para uma série extravagante de megashows). Sua mixtape solo Mono (2018), inclusive, está cotada para concorrer ao próximo prêmio Grammy. Já Beenzino, tem uma trajetória diferente: ele já angaria elogios desde sua estreia solo com o disco 24:26 (2012), mas só estourou mesmo ao relançar um de seus clássicos, a música “Dali, Van, Picasso”. E, evidentemente, não podemos deixar Jay Park de fora: ele é B-boy, já foi integrante do 2PM, e ainda é CEO da própria gravadora.
E não pense que trata-se de um “clube do bolinha”. Pelo contrário: basta recordar o trabalho de mulheres como a superstar CL – ex-integrante do lendário 2NE1 sempre à frente dos versos empoderados do quarteto – para perceber que não é esse o caso. Em 2015, já em voo solo, ela juntou-se a Diplo, RiFF RAF e OG Maco para criar “Doctor Pepper”, um dos vários hits do gênero que a rapper têm a oferecer. Vale lembrar também dos esforços de Hyuna e NADA que, para além de serem expoentes do K-Hip Hop, ainda arriscam-se por manter uma postura não-submissa que, vez ou outra, gera polêmica devido aos padrões machistas que ainda regem o imaginário coletivo do mercado musical da Coreia.
O mais recente passo do K-Hip Hop rumo ao mainstream, por incrível que pareça, não vem da internet, mas da televisão. Em 2012, surgem programas de batalha musical como Show Me The Money – que apresenta artistas do underground dando duro no palco – e seu spin-off Unpretty Rapstar – dedicado a lançar rappers femininas. Sem a ajuda desses realities BewhY jamais teria conseguido espaço para colaborar com o ícone norte-americano dos anos 1990 Talib Kweli na canção “International Waves”. Jessi, vice-campeã da primeira temporada de Unpretty Rapstar, talvez também não pudesse ostentar seus milhões de views no clipe de “Gucci”, de 2017, sem a ajuda da TV.
O vestibular
Segundo a organização diplomática Korea Foundation, a partir de 2016, o Hip Hop passou a se enquadrar como um dos produtos pertencentes da chamada Hallyu Wave – fenômeno da exportação cultural que movimenta a economia do país através de produções artísticas e de entretenimento desde os anos 1990. “No século 21, cultura é poder”, disse o ex-presidente Park Geun-hye durante um de seus primeiros discursos em 2013, referindo-se à crescente globalização da onda coreana. Para o Ocidente, os rappers da Coreia ainda podem combinar mais com o Jonas Brothers do que com Drake, Post Malone ou Travis Scott, mas o fato é que eles estão criando repertório e evoluindo a cada dia. Quem sabe o próximo Kanye West não vem de lá?
Abaixo, uma playlist com os nomes mais importantes para você entender qual é a do K-Hip Hop.