Zico Goes, uma vida de MTV Brasil: a lição é não se levar tão a sério

A MTV foi ao ar pela primeira vez há 30 anos e seu diretor de programação mais longevo relembra como um canal que passou quase uma década no vermelho tornou-se a maior referência jovem da TV brasileira entre os anos 1990 e 2000

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Fotos: Arquivo Pessoal

Não é possível falar sobre Zico Goes sem mencionar a MTV Brasil, assim como seria preciso um exercício criativo de tapa buracos para narrar a história da MTV Brasil sem citar Zico Goes. O ex-diretor de programação participou ativamente – e em diferentes posições – de 20 dos 23 anos em que o canal ficou no ar em seu modelo clássico, entre 1990 e 2013.

Neste mês, quando a MTV Brasil completa 30 anos no ar – bem diferente do que a caracterizava nos tempos áureos –, Zico, atualmente no Fox Group, relembra parte que lhe cabe nessa história, fala dos trunfos, das derrapadas e reflete como um canal que passou quase uma década no vermelho tornou-se a maior sensação jovem do audiovisual brasileiro entre os anos 1990 e 2000.

Disseram que eu cheguei americanizada: o início

Zico começou a frequentar o prédio da MTV Brasil no bairro do Sumaré, zona oeste de São Paulo em abril de 1991 como tradutor freelancer para o núcleo de jornalismo, então dirigido por Zeca Camargo. O canal, lançado em outubro de 1990, não tinha nem um ano. Ele, hoje aos 56, não tinha nem 30.

“Eu sou um exemplo de como as coisas funcionavam na MTV. As pessoas começavam do zero. Comecei como tradutor freela, trabalhava no departamento de jornalismo. Virei redator dos programas do núcleo e aí fui ficando. Lá, as pessoas que ficavam iam crescendo”, conta o ex-diretor.

A MTV tinha chegado com uma proposta até então inédita no Brasil: um canal de notícia e entretenimento importado dos Estados Unidos que falaria exclusivamente sobre música. O jovem brasileiro poderia, enfim, acompanhar videoclipes das bandas que amava em uma grade da TV aberta voltada a isso, sem ter de esperar pelos especiais dos canais tradicionais.

Não tinha nem programação nacional para isso. Fora as produções autorais de gigantes como a Globo, eram poucas as bandas ou músicos daqui que haviam investido dinheiro em videoclipes. Como saída, além da tomada da programação por criações dos Estados Unidos e da Europa, o canal apostou no que se tornaria uma de suas principais marcas: seus apresentadores, os VJs – uma fórmula americana com sotaque brasileiro.

“De cara, a imagem da MTV Brasil ficou evidente com os VJs, a despeito de não haver muitos programas, mesmo sem muitas produções nacionais. Ter um Thunder[Bird], uma Astrid [Fontenelle], uma Maria Paula, um Zeca muda muito o que se via na televisão. Logo a MTV disse ao que veio: ela era baseada nos videoclipes e nos VJs, já estava estabelecido desde o comecinho”.

Não demorou muito para que o canal, então uma joint venture entre a multinacional Viacom e a brasileira Abril, entendesse que, curiosamente, não sobreviveria só de música. Os videoclipes que tanto davam o rosto da MTV e foram seu principal chamariz não pagavam as contas.

O auge

“A não ser o Disk MTV [primeiro programa lançado pelo canal], que era uma parada muito específica com um púbico muito jovem e muito fiel, só a música, só o videoclipe, não davam uma boa audiência”. Zico lembra da transmissão ao vivo do show da Madonna no estádio do Morumbi, em São Paulo, em 1993. A empresa investiu uma grana e não teve resultado. “A gente caiu do cavalo, não deu audiência”.

A mudança começou em 1995. O canal se reestruturou e passou a investir na programação ao vivo com programas que não falavam exclusivamente de música, mas de diferentes assuntos do mundo jovem, como o Teleguiado, em que Cazé Peçanha ligava para a casa de telespectadores para perguntar o que queriam ouvir, e o Barraco, uma mesa redonda comandada por Astrid que debatia temas variados com um grupo de convidados.

A opção pelo ao vivo, Zico lembra, tinha um tanto de inventividade e muito de praticidade. “O grosso da programação ao vivo era muito mais uma questão de otimizar os recursos que outra coisa. Um programa de estúdio gravado, como o Disk, na época, demorava muito mais para ser feito. É matemática simples: todo mundo tem que chegar na hora porque o programa vai começar. Então não tem atraso ou ‘ah, errei, volta a fita’. Isso trouxe uma agilidade. E, claro, você ganha com uma certa intimidade”.

Em 1995 também surgiram dois dos produtos que mais marcariam o canal: o VMB, premiação musical com os melhores do ano, baseada no modelo americano, e o RockGol, um campeonato de futebol com times formados por integrantes de bandas, criação brasileira.

Estes são, coincidentemente ou não, os dois xodós de Zico no canal. “Com o RockGol eu me envolvia pessoalmente, e o VMB era o nosso grande carnaval, uma emoção. [Na audiência,] era uma exceção à regra, dava um Ibope duas ou três vezes maior do que a média do canal. Além de ser ao vivo e ter essa coisa da premiação, tinha uma história que você estava contando, trazia para dentro da MTV pessoas que não eram muito assíduos: desde o pessoal do Tropicalismo a Raul Gil e Hebe Camargo”.

O canal finalmente estourou. Em 1999, quase uma década depois do lançamento, a MTV Brasil saía do vermelho pela primeira vez. “Como canal aberto, ela brigava com os grandes pelo mesmo bolo de publicidade e sobrava umas lasquinhas de vez em quando. O Brasil não estava acostumado com esse modelo específico [de nicho] porque não dava audiência, mas ela tinha outro valor, falava com o público jovem.”

Qual foi a sacada? Mostrar esse lado para o conservador mercado publicitário brasileiro. “A gente se aproveitava do ótimo relacionamento que a gente tinha com o público para dizer: você vai conquistar muito menos audiência do que está acostumado, mas a intimidade que a MTV tem com a sua audiência é muito rica. Você não vai comprar 200 mil olhos, vai comprar olhos super adaptados ao seu produto. Você não vai desperdiçar munição e atirar para tudo quanto é lado, vai acertar o alvo.”

Neste período, Zico assumiu a direção de programação ao lado de Cris Lobo. “Era uma relação entre programação e produção, um pouco como arquiteto e engenheiro. Eu era mais arquiteto e ela mais engenheira, mas o conteúdo da MTV estava nas nossas mãos”.

“O VMB era uma exceção à regra, dava um Ibope duas ou três vezes maior do que a média do canal. Além de ser ao vivo e ter essa coisa da premiação, tinha uma história que você estava contando, trazia para dentro da MTV pessoas que não eram muito assíduas: desde o pessoal do Tropicalismo a Raul Gil e Hebe Camargo”

Foram os anos de ouro do canal. Sem precisar se ancorar nos videoclipes, que continuavam parte relevante na programação, o canal investia em humor (Hermes & Renato e Piores Clipes do Mundo, com Marcos Mion), em programas para jovens (Fica Comigo, com Fernanda Lima, e Ponto Pê, com Penélope Nova), talk shows (Gordo a GoGo, com João Gordo), além de produções de shows (Acústico MTV, Lual MTV e MTV Ao Vivo), que eram, de quebra, sucesso fonográfico.

YouTube e o fim do monopólio jovem: a queda

Foram 10 anos de domínio entre os jovens. Não havia adolescente dos anos 1990 que não assistisse a pelo menos um programa da MTV. Mas, como tudo muda (e com toda razão?), novas gerações chegaram e, junto a internet – e a um novo portal multimídia chamado YouTube –, o canal já não tinha mais seu domínio exclusivo desse público.

“Aquilo que você vendia – ‘aqui se fala com jovem, ele está aqui antes de todo mundo’ – isso já não era mais verdade com a internet. A partir de 2005, com YouTube, era pior.” O dinheiro, que já era curto, foi ficando cada vez mais escasso.

Em 2008, veio o xeque-mate (ou “a cagada da Abril”). A companhia jornalística que tinha construído um império com a venda de revistas também via seu mercado cobrar diversificação e decidiu expandir seus produtos audiovisuais com o lançamento de dois canais em 2007: o Ideal TV, voltado ao mundo corporativo, e o FizTV, canal colaborativo em que os telespectadores produziriam conteúdo.

O problema é que a Abril não só apostou que o conteúdo era bom, como achou que o conteúdo era bom demais – e, aparentemente, não era. “Ela disse [para as operadoras de TV a cabo]: estou com dois canais aqui para lançar e, para continuar a ter o sinal da MTV, você precisa ter esses dois canais. Mas era um blefe. E assim foi: a Sky tirou a MTV do lineup, deixou de pagar, obviamente, e isso também influenciou na audiência”.

Foi a época da separação. Zico deixou o canal em junho de 2008, em meio a uma queda na audiência e na arrecadação. A empresa, então, fez uma aposta arriscada, mas financeiramente viável: grudou no público extremamente jovem, que ainda o assistia, e deixou um pouco de lado seu perfil curador de música. Foram os anos Restart.

“Isso deu certo durante um tempo porque melhorou a audiência. Mas a percepção de que a MTV era um canal de curadoria foi pra cucuia. Até 2010, a programação estava impregnada de Restart e o [setor] comercial abusava disso. Eles estavam em muitos momentos da programação, o que era ruim porque o Restart se comunicava com um público muito jovem. O público mais velho, um pouco mais musical, estava se desligando”.

“Aquilo que você vendia – ‘aqui se fala com jovem, ele está aqui antes de todo mundo’ – isso já não era mais verdade com a internet. A partir de 2005, com YouTube, era pior”

Depois de dois anos e meio – em que enfrentou um câncer (“do qual me livrei olimpicamente”) –, ele recebeu o convite para retornar. Na época, trabalhava no GNT, da Globosat. Aceitou na hora. “Por duas razões: eu sempre achei que a MTV era a minha casa e eu tava morando no Rio, pegava ponte-aérea toda semana, minha família morando em São Paulo. Quer voltar? Voltei na hora”,

De cara, uma mudança: “Restart até as 19h, depois não entra mais”. Assim foi. A estratégia de retomada seria tentar descolar a imagem do conteúdo exclusivamente adolescente e voltar a promover artistas nichados. Depois das 19h, a MTV trocou as bandas teen por Criolo, Emicida e outros artistas talentosos, mas, à época, nichados, que o canal tinha parado de prestar atenção. O preço? A audiência. “A percepção [do conteúdo do canal] deu uma melhorada, só que o Ibope diminuiu”.

Nessa época, o canal ainda tinha como trunfo também o setor de comédia, com o lançamento da geração de humoristas que se tornariam os mais relevantes do país, como Marcelo Adnet, Tatá Werneck, Dani Calabresa e outros. Mas, por mais que o produto fosse bom, a ópera estava composta. “A coisa degringolou mesmo quando a Abril decidiu que não queria mais brincar. No final de 2011, a gente já sabia, internamente, que eles iam pular fora”. Com a forte especulação, na mídia e nos bastidores, sobre o fim ainda não anunciado oficialmente, os poucos anunciantes que restavam sumiram e, entre especiais e programas comemorativos, o canal encerrou as atividades em setembro de 2013.

 

O segredo é não se levar a sério

Zico vê tudo com carinho e humor. Os xodós foram muitos, mas ele destaca mesmo o programa dos roqueiros jogando bola – uns craques, outros nem tanto – que trouxe ao mundo personagens como Wolverine Valadão (Nasi, do Ira!), Tiozão do Churrasco (Guilherme Morgado, do Catedral), Gigante Irlandês (Jimmy, do Matanza), Quentin Tarantino (Samuel Rosa, do Skank) e o grande goleiro Cléééston (Detonautas) e foi ao ar de 1995 a 2008.

E o VMB, principal prêmio da música brasileira entre 1995 e 2012, cenário de grandes encontros. Uns ornavam, como Raimundos e Charlie Brown Jr. em 1999; outros nem tanto, como Carlinhos Brown e Racionais MCs em 1998; e outros, menos ainda, como Caetano Veloso e David Byrne, dos Talking Heads, que gerou o “MTV, bota essa porra pra funcionar”, um dos bordões do canal nos anos seguintes, nascido de um erro de produção.

Ele também fala empolgado dos Acústicos MTV, “talvez o formato mais bem-acabado da MTV, porque tinha a essência da MTV e, ao mesmo tempo, não era um videoclipe. Tinha um viés: tirar os músicos da tomada”.

Os shows, que começaram como programa com o Barão Vermelho em 1991 (o disco só seria lançado 15 anos depois em um box especial), se tornaram um sucesso fonográfico. O do Titãs, lançado em 1997, vendeu 1,7 milhão de cópias – recorde entre eles e da banda. “A gente gravava dois, três por ano. Havia filas de artistas querendo fazer o Acústico”.

Não era só uma chance de alta vendagem que atraía as bandas. O Acústico MTV era, muitas vezes, uma chance de retomada. Capital Inicial, Ira!, Kid Abelha, Ultraje a Rigor, entre outros, voltaram ao mainstream depois dos seus lançamentos na MTV. “Na época do lançamento [2000], o Capital tava meio caído e muita gente achou que era uma banda nova! E teve também muita gente que falou: ‘pô, vocês ressuscitaram o Capital, caramba. [risos]”

Como o resto, o formato, retomado experimentalmente com Tiago Iorc em 2019, parou de fazer sentido com o fim dos CDs e DVDs como carros-chefes do mercado fonográfico. Ficaram 34 registros, de João Bosco a Rita Lee, de Paulinho da Viola a Sandy & Júnior.

Seu preferido? Cassia Eller. “É um dos cenários que eu mais gostei de ver e marcou uma coisa muito MTV, que era dar bola para artistas que não tinham um destaque tão grande na época”.

Qual o mais improvável? Art Popular. “Era fora do nosso escopo. O pagode e o samba como um todo eram fora do escopo da MTV. A banda era bacana, os caras eram legais, mas não era a nossa cara”. Além disso, lembra ele, não eram ritmos originalmente plugados. “Essa era das justificativas para o Caetano nunca querer fazer um Acústico. Ele falava: ‘eu já sou desligado’. [risos]”

Zico diz que seu maior legado, no entanto, é a produção do My MTV, uma série de programas especiais que relembraram o canal em 2013, com a participação de VJs de todas as gerações. “Sabendo que a coisa ia acabar e que a Viacom ia recuperar sua marca e tudo que a gente tinha feito não ia ser aproveitado, o My MTV, sugestão da equipe, foi a coisa que eu mais me orgulho de ter encabeçado. Escancarou porque, nos 23 anos da MTV, a MTV foi tão importante”.

Entre os desleixos, ele diz não ter insistido mais no investimento em transmissão de shows ao vivo, mesmo sabendo que não daria audiência. “Isso dava a cara da MTV que o Multishow acabou pegando pra si porque tinha a Globo por trás, como transmissão do Lollapaloozza. Eu ressinto de não ter feito”.

“Eu sou um exemplo de como as coisas funcionavam na MTV. As pessoas começavam do zero. Comecei como tradutor freela, trabalhava no departamento de jornalismo. Virei redator dos programas do núcleo e aí fui ficando. Lá, as pessoas que ficavam iam crescendo”

E há, claro, as histórias vergonhosas. “Era um primeiro de abril, a MTV gostava de pregar peça na sua audiência – uma vez falaram que os Titãs tinham acabado, deu maior problema – e, na época, o Prince não tinha mais nome, usava um símbolo, ele sempre aparecia com uma espécie de uma máscara”, lembra o ex-diretor. “A gente inventou e começou a chamar no ar: ‘entrevista exclusiva com o Prince’. Pegamos um cara qualquer que era parecida com o Prince, colocamos ele no estúdio e o Zeca entrevistou como se fosse o Prince! Mas foi péssimo, porque tava na cara que não era o Prince, foi muito mal feito. Nem inglês direito ele falava: só ‘yes’, ‘no’. [risos] Me envergonho, mas foi divertido fazer, evidentemente.”

Outros tempos, outro público, outro canal. A leveza de não se levar a sério, diz, é a lição da MTV Brasil que ele leva e repete. “Não se levar a sério não significa que você não é sério, significa que você não acha que tem a razão o tempo todo. Isso te permite errar e, errando, você acrescenta mais coisas no seu DNAzinho de televisão. Hoje, as empresas se levam muito a sério”.

Sobram acertos, erros, porras que não funcionaram, programas marcantes e um canal que ajudou a formar uma geração musical de brasileiros.

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