Resenhas

Charlotte Day Wilson – ALPHA

Navegando entre referências de R&B, Jazz e Gospel, disco de estreia da artista canadense apresenta narrativa forte e persona sincera

Loading

Ano: 2021
Selo: Stone Woman Records
# Faixas: 11
Estilos: R&B, Jazz, Gospel
Duração: 33'
Produção: Charlotte Day Wilson, Thomas Brenneck,D'Mile, Sir Dylan, Jack Ro

No alfabeto grego, a letra alfa (α) tem diferentes entendimentos e o fato de ser a primeira certamente tem grande peso na construção destes significados. Para a física, é a representante, entre outras variáveis, da aceleração angular de um corpo. Na bíblia, representa uma característica de Deus relativa à sua atemporalidade, o começo e o fim. Muitas vezes, é também utilizada para se referir a machos de determinadas espécies que possuem dominância sobre alguns grupos. Ou ainda, a primeira estrela de uma constelação, a primeira versão de um programa de computador. O fato é que usar este nome confere à coisa um caráter especial e muito simbólico. Talvez por isso a cantora e compositora canadense Charlotte Day Wilson tenha escolhido este nome para batizar seu “disco de estreia” – um termo que aqui ganha uma conotação totalmente diferente da usual.

ALPHA é um daqueles discos de estreia que vem muito mais no sentido de confirmar e consolidar uma trajetória artística riquíssima do que revelar um nome inédito e em ascensão. A história de Charlotte Day Wilson começou muito antes deste registro e uma ótima forma de perceber isso é através de seu sublime EP CDW (2016). Nele, a artista deixou claro que o R&B e a música Soul são seus refúgios mais seguros. A suavidade inerente daquele gênero musical, aliada com melodias simples, foi um terreno fértil para que Charlotte pudesse semear todo o calor de sua marcante voz. Além disso, o apego aos arranjos vocais Gospel confere um ar quase ritualístico ao escutar suas composições – como se cada canção fosse uma celebração muito honesta dos sentimentos de Charlotte. Sua sinceridade também chamou a atenção de diferentes artistas –Badbadnotgood e Kaytranada que levaram sua voz para cantos do Jazz e da música eletrônica. Assim, fica claro que, apesar de ALPHA ser o começo, ele certamente já carrega muita história.

O disco é construído em uma zona de conforto sonora de Charlotte, o que não significa que ele é menos interessante e criativo por isso. Ao se cercar das referências que cresceu escutando e lapidando, a artista fica circundada de memórias e confortos que lhe impulsionam a contar histórias. Apesar de muitas canções flutuarem pelo tema do término de um relacionamento, este não é um típico disco de coração partido, mas sim da narrativa autêntica de Charlotte perante o mundo. Nesse sentido, o disco foi “beneficiado” de um atraso do lançamento por conta da pandemia. Ao terminar a primeira versão (a que seria lançada), Charlotte não sentia firmeza naquela finalização, mas tinha medo de ter que atrasar o disco um pouco mais. Em entrevista para Exclaim, a artista comentou que este tempo a mais serviu para que ela pudesse refletir sobre o processo, compreendendo que o disco de fato ficaria pronto depois de trabalhar um pouco mais sobre ele. De certa forma, este sentimento da dúvida de um processo acaba entrando na sonoridade do disco. Ou seja, Charlotte não é exatamente essas 11 faixas, mas tudo que há entre elas.

Por isso, muitos usam o termo “solto” (no inglês, “loose”) para definir sua sonoridade que percorre o R&B, o Gospel e o Jazz. Pois Charlotte claramente não tem a intenção de permanecer imóvel perante os acontecimentos de sua vida – que dirá na composição de seus discos. A primeira faixa, “Strangers” começa a nos situar no imaginário de Charlotte com arranjos espaçados envolventes. Badbadnotgood empresta seu Jazz de veludo na faixa “I Can Only Whisper”, um híbrido do virtuosismo com o romantismo dos anos 70. O single “If I Could” é uma expressão intensa do talento vocal de Charlotte, com vocais que tomam todo o arrepio e espiritualidade do Gospel e colocam-no na malemolência do R&B. “Changes” é uma daquelas canções que se beneficia da imprecisão, na beirada da Psicodelia e deixando o ouvinte livre para deslizar entre as texturas fantasmagóricas de seu arranjo. “Keep Moving” traz um lado mais dançante e Pop de Charlotte, sem abrir mão da introspecção que sua voz traz em sua narrativa. “Adam Complex” encerra o trabalho isolando todos os excessos e dando o palco central para que a artista possa dar um ponto final em todas suas memórias. Aliás, um ponto final não. Reticências.

ALPHA é o começo, o meio, o fim e todo o restante de Charlotte Day Wilson. É honesto e convidativo, reconhecendo em si próprio um processo constante de mudança, sem abrir mão de seus alicerces fundamentais.

(ALPHA em uma faixa: “If I Could”)

Loading

Autor:

Produtor, pesquisador musical e entusiasta de um bom lounge chique