Há um poema de Fernando Pessoa que usa o rio como metáfora para a efemeridade do tempo e a dificuldade que temos de capturar estes instantes. Quando procuramos entender o significado aplicado à música, ela compartilha um tanto destas mesmas frustrações da poesia de Pessoa. Compor um disco é capturar um instante mas, ao mesmo tempo, é perpetuá-lo pela história e deixá-lo exposto a diferentes significados.
Além disso, um álbum raramente é uma representação tão pontual para um artista, visto não só o grande tempo que leva para se produzir, como as constantes transformações pessoais dos compositores que são impossíveis de se traduzir para o papel à medida que ocorrem. Apeles, projeto encabeçado por Eduardo Praça (ex-Quarto Negro), é um nome que leva este debate a fundo, ao botar em evidência a questão do tempo em seu disco solo de estreia.
Rio Do Tempo é um disco extremamente imersivo, no qual a imprevisibilidade e inconsistência são os objetos principais. Não que isso seja um demérito, muito pelo contrário. Eduardo se aventura por diversas referências e gêneros, em uma tentativa de buscar uma compreensão do efêmero que se apresenta de diversas forma à medida que o registro se desenrola. Suas letras, por exemplo, exemplificam a riqueza da personalidade humana com temáticas diferentes, que vão das sensações carnais e ardentes de Vermelho até metáforas fantásticas do cosmos com os amantes.
Já a sonoridade deste trabalho nos impede de prever o que vem pela frente, mudando constantemente arranjos e timbres em prol da compreensão do tempo. De uma forma geral, Eduardo entende que não é possível pegar duas vezes a mesma água do seu rio de pensamentos e anseios e, portanto, ele aproveita o máximo que pode o contato com alguns deles, transformando cada faixa em um momento de contemplação único.
XXVI I ‘13 abre o disco com pads hipnóticos e baixos dissonantes que pedem atenção e precaução do ouvinte, uma vez que estamos entrando em um terreno extremamente inconstante. Funeral (Ode às Desvirtudes) nos joga para outro canto da mente de Eduardo, com referências eletrônicas e bastante envolventes, com alguma influência de Grizzly Bear. Clérigo, por sua vez, traz o Folk com força em uma balada que faria Johnny Cash se entristecer, tamanha dramaticidade e desenvoltura dos arranjos. Imensamente Sutil é mais etérea, mas traz com firmeza a imagem da volatilidade das memórias, com referências mais Dream Pop. Sociedade dos Lobos é soturna, tal qual os animais que seu título faz menção. Por fim, E Eu Anseio Pela Colisão Dos Mundos exalta as epifanias em uma peça de Post-Rock grandiosa e que se esvai à medida que o disco se encerra.
Eduardo Praça nos prova não seu talento como produtor e compositor, mas como filósofo e poeta que encara esta difícil questão do tempo de forma saudável e belíssima. É interessante ouvir o trabalho em momentos diferentes, trazendo cada qual uma interpretação diferente que pode ir completamente contra a primeira. Dessa forma, pode ser que esta resenha não tenha sentido após uma nova audição mas, certamente, temos certeza de que este é um disco bastante maduro ao nos provocar estas reflexões.
(Rio Do Tempo em uma faixa: Imensamente Sutil)