Não chega a ser um consenso, mas muitas pessoas que pesquisam e trabalham com arte concordam que a experiência com uma obra – por exemplo, em um museu – deve acontecer antes de conhecermos seu título. Pense em uma escultura ali exposta e tudo o que o contato com ela pode te trazer, todas as correlações que seu cérebro faz a partir de suas memórias, do que você sente e pensa diante da obra, e por aí. Se você sabe seu nome antes desse processo, grande parte dele será guiado pelo quanto essa informação delimita o seu raciocínio, como se estabelecesse uma narrativa a partir do título, e isso minimiza as possibilidades de interpretação que você poderia ter com a obra.
Grande parte de mim queria não saber que o terceiro álbum de Arooj Aftab se chama Night Reign, ou talvez até mesmo nem tenha visto sua capa, porque foi impossível dissociar estas nove músicas do aspecto noturno contido em seus arranjos, letras e ambientação geral. Posteriormente, não foi surpresa alguma ler que a cantora paquistanesa quis que essas faixas fossem uma homenagem ao seu período favorito dos dias, ou, nas palavras da artista, sua “maior fonte de inspiração”. O amor pela noite é percebido mesmo para quem não entende o que está sendo cantado em urdu, e também nas músicas instrumentais do disco.
Assim como a visão é limitada na madrugada, Arooj construiu faixas com um alcance que não se expande muito no campo sonoro. Há um eco aqui, uma reverberação ali, mas o álbum passa a sensação de uma musicalidade que chega até onde a luz da vela toca na escuridão. Como não poderia ser, há uma aura misteriosa caracterizada por timbres graves (como sua voz) e essa espécie de silêncio que ronda os sons, como se tudo acontecesse em um lugar sonoro muito específico – o tal do foco de luz mencionado há pouco. Há uma leve tensão, como se algo pudesse acontecer a qualquer momento É sensação de não conseguir enxergar muito longe.
Ao mesmo tempo, a noite traz a calma, a introspecção, o conforto de se estar em casa para o descanso. Faixas da segunda metade, como “Saaqi”, com o pianista Vijay Iyer, nos colocam em um estado contemplativo de timbres mais agudos, quase como se as músicas tivessem sido feitas para ninar adultos. “Whiskey” é outra com esse aspecto onírico trabalhado em uma leveza muito convidativa. Assim como as demais no disco, sua melodia é cíclica, hipnótica, quase meditativa. É quando o outro lado da noite, o período em que costumamos sonhar, dá as caras.
É nesse tom que Night Reign termina com “Zameen”. O vocal sublime de Arooj nos embala em sorrisos acalentados enquanto o amanhecer não vem. É um disco marcado, sim, pela experiência que temos a partir de seu nome, mas o que mais se destaca é a intensidade da beleza que ela consegue alcançar em suas músicas. É fruto de sua experiência múltipla tanto no jazz quanto no folk, ou como você preferir chamar a música que se espelha nos elementos culturais próprios de um ou mais povos. Do lado de cá, dos ouvintes, é um disco frio e escuro – mas que oferece também um cobertor.
(Night Reign em uma faixa: “Bolo Na”)