Resenhas

Arthur Verocai – Arthur Verocai

O disco de 1972 é uma das gravações mais originais da história da música brasileira. Nesta quinta-feira, o artista se apresenta em São Paulo ao lado de BadBadNotGood

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Ano: 1972
Selo: Continental
# Faixas: 10
Estilos: MPB, Jazz, Soul, Folk, Música Clássica
Duração: 29'
Produção: Arthur Verocai

O disco homônimo de estreia de Arthur Verocai, lançado em 1972, permaneceu uma pérola escondida até ser devidamente redescoberto cerca de três décadas depois. Na época do lançamento, até o próprio dono do álbum chegou a colocar em xeque a própria criação, por conta da indiferença de público e crítica, e decidiu respirar ares que se distanciavam da musicalidade ousada do projeto. Verocai foi trabalhar com jingles e se jogou no toque de caixa das trilhas sonoras para televisão. Felizmente, na virada do milênio, produtores de Rap e donos fissurados de lojas de vinil ao redor do mundo passaram tratar o raro disco como um clássico, o estopim para que novas – e velhas – gerações o reconhecessem da mesma forma. Enfim, justiça: Arthur Verocai (1972) é nada menos do que brilhante. 

Mesmo sendo seu primeiro trabalho autoral oficial, o maestro, multi-instrumentista, compositor e arranjador carioca já era figura conhecida pelos estúdios brasileiros. À época do lançamento, com 27 anos, ele já havia criado arranjos para nomes como Ivan Lins – em especial no trabalho de estreia, Ivan Lins… agora (1970) –, Célia, Jorge Ben Jor e o grupo O Terço. Além disso, foi o responsável pela composição de “Um Novo Rumo”, cantada por Elis Regina no Festival Universitário do Rio de Janeiro, em 1968. 

Com carta branca da gravadora Continental, Verocai passou um mês em um estúdio em Botafogo, acompanhado de uma orquestra com violinos, violoncelos, percussão, saxofones, pianos, trombones, corais, flautas e seja lá mais o que instigasse sua criatividade caleidoscópica. O resultado é uma viagem sonora que, sim, explora influências brasileiras da época – como Clube da Esquina e Tropicália – e bebe do Jazz, do Folk e da Música Clássica. Mas, sobretudo, por conta da genialidade de Verocai, o disco soa único, daqueles que a cada audição revela um novo segredo que gira novamente toda a roda de supostas influências. 

Escrita por Vitor Martins, poeta paulistano responsável pela maioria das letras do álbum, “Caboclo” abre o repertório já apresentando a infinidade de texturas e sons da obra de Verocai. Para se ter uma noção, ele chegou a dizer que a canção foi composta inspirada em Crosby, Stills & Nash e James Taylor, mas basta apenas uma ouvida para perceber que ela extrapola com sobras o universo do Folk/Pop norte-americano. Sobressaem linhas de piano jazzeadas repentinas, harmonizações épicas de cordas servindo de cama para as vozes e ainda uma aura psicodélica promovida por sintetizadores. Mas a magia de Verocai não se limita à complexidade – ela é, na verdade, o caldo que faz brilhar melodias leves e pops. É o rebuscado que se harmoniza ao familiar.

“Sylvia”, feita para a mulher do músico na época, é uma faixa instrumental guiada a todo instante por um violão simples – Verocai, vale lembrar, considera o violão o seu instrumento “nativo” –, que aos poucos é sobreposto por camadas belíssimas de violinos e instrumentos percussivos. Mas nem sempre a singeleza precisa necessariamente puxar o requinte, como um mistério escondido. Inspirada na ditadura militar, “Presente de Grego”, por exemplo, traz Verocai, logo no início, mostrando sua competência impressionante para a orquestração, ao comandar diferentes instrumentos – e diferentes harmonias – que sustentam a melodia. E – eis a mágica da composição passando pelo crivo de um arranjador genial que também é o compositor – a cola gruda e gruda demais. Harmonias exuberantes aparecem por todo o disco, como na breve “Seriado”, cantada por Célia, e “Despedida A Ela”, na qual Verocai, em meio ao mosaico de cordas, sopros e coros atmosféricos, faz a guitarra chorar.

Mais de 40 anos depois, “Na Boca do Sol” acabou se tornando a canção mais emblemática do álbum. Vitor, nascido em Ituverava, é novamente o responsável pela tocante poesia iniciada com os versos “Na minha cidade do interior/ Tudo que chegou, chegou de trem”, enquanto Verocai comanda uma potente orquestra de metais, que foi fundamental para o resgate da obra do maestro nos últimos anos. MF Doom sampleou a faixa em “Orris Root Powder” e 9th Wonder a reaproveitou – e a picotou lindamente na MPC – em “Do The Right Thang”, de Ludacris. A partir da década de 2000, o álbum e seu idealizador foram revistados aos poucos e a reutilização feita por dois produtores pesos pesados do Hip Hop foi o empurrão que faltava para novas gerações de todo o mundo mergulharem no caldeirão. 

Há algumas explicações por aí para o fracasso comercial e o sono da crítica especializada quando o disco chegou ao mercado: o domínio dos músicos que se projetaram no final da década de 1960 nos festivais (Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque), o que dificultava a ascensão de novos artistas; a fraca divulgação da Continental, que no período dava muito mais atenção ao fenômeno Secos & Molhados; ou o som era (muito) à frente de seu tempo. As três em conjunto podem sustentar uma explicação plausível, mas a última, ainda que clichê, parece ser a mais decisiva. 

Mesmo após a bricolagem tropicalista e os flertes beatlenianos do Clube da Esquina, um gênio que trazia consigo influências que iam do Pop à Música Clássica, de Milton Nascimento a Frank Zappa, do Jazz a Villa-Lobos, de James Taylor a Debussy e que estava disposto a, de fato, colar tudo isso, talvez tenha soado estranho até para os ouvidos mais treinados. “Não existe aquele uníssono total, matemático. O somatório de todas as caras, quase afinadíssimas, é o resultado que dá a beleza da massa sonora”, decretou Verocai, em entrevista ao programa O Som do Vinil, do Canal Brasil. Hoje, ele é celebrado por músicos de variadas vertentes e sampleado aos montes no gênero mais ouvido do mundo. E nós podemos respirar aliviados, porque houve tempo para avisá-lo que a gente descobriu o que ele sempre soube: o estranho, na verdade, era – e sempre foi – simplesmente maravilhoso. 

(Arthur Verocai em uma faixa: “Na Boca do Sol”)

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