Resenhas

Björk – Debut

Disco de estreia colocou Björk sob os holofotes, mostrando uma artista complexa e que modificaria muito do cenário Pop da época

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Ano: 1993
Selo: One Little Indian; Elektra Records
# Faixas: 11
Estilos: Pop, House, Trip-hop e Jazz
Duração: 48’
Nota: 4.25

O primeiro álbum da islandesa Björk saiu quando ela tinha apenas 12 anos, o autointitulado Björk (1977) foi lançado somente na Islândia e já fez a pequena ganhar um disco de platina. De todo modo, o disco considerado como estreia oficial da carreira solo de Björk viria bem depois. A cantora já tinha passado por diferentes grupos punks e chamado atenção no cenário alternativo ao lado de sua banda Sugarcubes – até que, em 1993, chega Debut: o disco que expandiria as possibilidades da música pop e transformaria a islandesa em objeto de estudo. Não à toa, a exposição que chega agora ao Museu da Imagem e do Som, em São Paulo (“Björk Digital”), não é a primeira experiência museológica da artista.

Debut é o disco mais vendido de Björk até hoje e, em parte, isso se dá porque ele, realmente, funcionou como divisor de águas para a música que era feita no início dos anos 1990. Nos Estados Unidos, o grande acontecimento musical era o grunge, com Kurt Cobain na dianteira, cercado de uma boa quantidade de bandas alternativas que, enfim, estavam passando a lançar seus discos por grandes gravadoras. Na Inglaterra, o trip hop começava a ganhar força, especialmente com o lançamento de Blue Lines, de Massive Attack, em 1991. Nessa mesma época, após o fim do Sugarcubes, Björk muda-se para Londres, onde passa a ter contato com toda uma cena de música eletrônica que movimentava a noite da cidade.

Acid House, IDM, techno e outras vertentes chamaram atenção da islandesa, especialmente os artistas que estavam sob a gravadora Warp, como Aphex Twin, Autechre, B12 e The Black Dog. Debut, o disco, acaba por surgir de alguma intersecção entre essas novas sonoridades e o jazz, um dos gêneros favoritos de Björk – em 1990, a artista já havia gravado o disco Gling-Gló, junto do Tríó Guðmundar Ingólfssonar, em que tocavam antigos standards de jazz islandês.

Esse entrelaçamento de musicalidades quase opostas faz de Debut uma completa surpresa para aquele cenário grunge/trip hop, uma vez que o eletrônico ainda era relegado ao espaço underground – mal visto por muitos críticos e geralmente ignorado. Junto do produtor Nellee Hooper, Björk conseguiu colocar suas composições românticas e misteriosas nas paradas. Seus arroubos vocais, típicos de uma cantora de jazz, e videoclipes surrealistas tornariam-se, a partir daquele momento, a sua marca em um mundo em que a MTV ainda ditava tendências.

Olhando hoje para Debut, percebe-se que o disco quase beira a confusão: são mudanças abruptas de sonoridades. No entanto, isso não diminui a força das experimentações da islandesa e nem a quantidade de faixas clássicas que saíram dali. “Human Behavior”, que abre o disco, por exemplo, ganhou muito mais público devido ao seu clipe dirigido pelo francês Michel Gondry. Nele, Björk foge de ursos de pelúcia gigantes e sofre com insetos ao redor da lâmpada. A música, inclusive, é um belo resumo do DNA artístico da cantora: os temas circundam o paralelo entre o indivíduo e o universal, a letra é construída a partir da visão de um animal (inspirada pelos trabalhos do naturalista britânico David Attenborough) e contém samples de “Go Down Dying”, de Tom Jobim. O resultado, evidentemente, é uma união harmoniosa e relativamente inédita de jazz, bossa nova e acid house.

“Venus as a Boy” é mais uma das canções de Debut a virar um clássico – que já ganhou covers de um sem-número de artistas – e pende mais para o lado do jazz, em construção mínima, com Björk a dizer com entonação sexual: “He believes in a beauty / He’s Venus as a boy”, em tradução livre, algo como “Ele acredita na beleza / Ele é Vênus no corpo de um menino” – Vênus, relembrando, é a deusa do amor e da beleza na mitologia romana, sempre associada ao erotismo. As letras de Björk, em várias outras circunstâncias de sua carreira, retomam o tema da sexualidade. O assunto está no mesmo patamar de outros abalos ontológicos como o amor, a solidão e o medo (também, obviamente, presentes em sua obra).

O clipe de “Venus as a boy”, por sua vez, é dirigido por Sophie Muller e traz a cantora em relações dúbias com ovos, sejam eles cozidos, crus ou em omeletes. Como tudo no imaginário da artista, os ovos não são só ovos. Eles, na verdade, surgem como uma referência ao romance erótico História do Olho (1928), de Georges Bataille – livro que narra as descobertas sexuais de dois adolescentes que, durante suas peripécias, brincam com ovos crus, cozidos, em circunstâncias menos gastronômicas do que o usual.

As excelentes “Big Time Sensuality” e “Violently Happy” também ganharam clipes. A primeira com Björk sobre um caminhão, em P&B, e sob direção de Stéphane Sednaoui, a cantora perambula por Nova York, enquanto ostenta um penteado com pequenos coques na cabeça. A segunda traz Björk, com direção de Jean-Baptiste Mondino, em um quarto acolchoado de hospício acompanhada por diferentes personagens que se conectam a esse universo de loucura.

Musicalmente, no lado mais jazz do disco, temos as ótimas “Aeroplane”, “The Anchor Song” e um cover de “Like Someone In Love”, clássico de Johnny Burke. Um standard gravado por gente como Chet Baker, Nat King Cole e Ella Fitzgerald. No lado eletrônico, ainda há momentos excelentes como a pulsante “Crying” – canção que funciona tanto nas pistas, quanto em versão acústica; ou como “There’s More To Life Than This”. A faixa, interessantemente, vem com a curiosa indicação: “Live at The Milk Bar Toilets”. De fato, ela gravada nos banheiros do bar que era um importante espaço da cena underground do eletrônico na época. A música até conta com uma versão mais convencional, lançada como lado B, mas é a curiosa estranheza dessa versão ao vivo que cativa. Nela, o ouvinte permanece tentando repetidamente adivinhar onde a cantora estava: ouvimos portas a abrir e fechar, risos e conversas, o som se aproxima e se afasta…

No geral, Debut marca uma virada de chave muito importante no mundo da música, em que diferentes gêneros são relidos pela ótica de Björk e passam a ser revisitados pela crítica musical e pelo próprio público. Com uma estreia extremamente bem recebida, Björk se transformou no ícone distinto que o mundo da moda, das artes e da música precisava. Tanto que até a rainha do pop Madonna acabou sendo influenciada e chamou a islandesa para compor a histórica “Bedtime Story”.

Essa fase inicial é coroada com um ensaio clássico: Björk ao lado de PJ Harvey e Tori Amos na capa da Q Magazine, em 1994, com a chamada “Hips. Lips. Tits. Power”, louvando as três artistas como fundamentais para a ressignificação do que era ser mulher na música pop e alternativa daquele final de século. Quase 30 anos depois, o Debut da cantora segue estonteante pelo simples fato de que, mesmo com maneirismos clássicos da década de 1990, ele envelheceu genuinamente bem, provando que Björk é a real acepção do avant-garde.

(Debut em uma música: “Human Behavior”)

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