Resenhas

Björk – Medúlla

De alguma forma, o dito “disco inaudível” da cantora e compositora islandesa pode, sim, ser uma boa introdução ao seu corajoso e extenso trabalho em experimentação musical e escavação da alma

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Ano: 2004
Selo: One Little Indian Records, Universal
# Faixas: 14
Estilos: Experimental, Alternative Pop, Acappella, Avant-garde
Duração: 46’
Nota: 5

Foi um amigo muito querido que me apresentou a música de Björk. Na época, eu deveria estar cursando o segundo ou o terceiro ano de Jornalismo, e, olhando para trás, percebo que decisão pretensiosa/adolescente foi a de começar a ouvir a obra da islandesa por Medúlla (2004). “Todo mundo considera este o disco mais difícil dela”, me avisou este amigo. Pronto, era o que bastava para um jovem gay nascido sob o signo solar de escorpião (tal como a cantora) se desafiar a entender o que tinha de tão complicado por trás deste álbum.

Curiosamente, minha reação inicial foi a de, simplesmente, não entender a razão pela qual essa alcunha de “inaudível” se anexou ao disco. Sim, eu sei o quão petulante isso soa, mas não posso negar: de imediato, o disco fez todo sentido para mim. Lembro de uma entrevista para o canal Arte 1 em que Caetano Veloso e Maria Bethânia relembravam a primeira vez que leram algum texto de Clarice Lispector. Enquanto o primeiro recorda-se de rapidamente “entender tudo!”, a segunda disse que demorou até conseguir se adaptar aos enleios da linguagem clariciana. Por minha vez, com Clarice, fui Bethânia, mas com Björk, fui Veloso: no ato.

Medúlla me atingiu como um soco no estômago. Para a psicóloga Maria Lúcia Homem, esse é, inclusive, o objetivo final de Clarice Lispector enquanto escritora. Ferir por meio das tentativas fracassadas (e, por isso, geniais) de tangenciar a verdade da nossa humanidade. Quando ela distorce a linguagem em seus contos e romances o intuito é claro: descrever algo que se desconhece por completo, mas que ao mesmo tempo é parte fundamental de existir, viver, estar presente no mundo. O quinto disco de estúdio da musicista islandesa tem essa mesma premissa e o resultado é, de fato, visceral.

Este adjetivo, porcamente utilizado no jornalismo cultural, cabe aqui com precisão. Visceral é o que vem das vísceras, das entranhas, e Medúlla foi criado, literalmente, a partir daí. Neste disco, Björk abandona as complexas estruturas eletrônicas pelas quais ficou conhecida (e com as quais mudou a história da música Pop) para mergulhar em um experimento quase 100% “acappella”. A voz é o maior instrumento do disco e a expansão desta ferramenta nesta obra talvez não tenha precedentes.

“Queria que o álbum fosse músculo, sangue e carne. Podíamos estar em uma caverna em algum lugar e uma pessoa ia começar a cantar, depois a outra ia fazer a batida e a próxima cantar a melodia, e vocês podiam ser muito felizes em sua caverna. É bem enraizado”, disse a cantora certa vez. No disco, a lista de colaboradores vocais é imensa e surpreendente. Primeiro, vale citar os corais londrinos e islandeses (presentes em quase todas as músicas). Para além deles, destaque para os beatboxers Rahzel (norte-americano, ex-membro do The Roots) e Dokaka (japonês, conhecido por ser capaz de imitar sons de diferentes instrumentos), e para a Tanya Tagaq — cantora de Katajjaq, uma forma de performance vocal executada culturalmente pelos Inuit (grupo de indígenas das regiões árticas do Canadá, Groelândia e Alaska) que consiste, em geral, em duas mulheres batalhando frente a frente em respirações de garganta intensas até que uma delas desista. Para conhecê-los melhor, vale assistir ao documentário The Inner or Deep Part of an Animal or Plant Structure (2004) que acompanha a gravação do disco.

No filme, aliás, Björk também discorre sobre os assuntos que queria abordar em Medúlla: “Estava lembrando de como eu costumava viver a minha vida, como eu era livre e despreocupada. Ao mesmo tempo, as pessoas ao meu redor me impactaram muito, principalmente em entender diferentes pontos de vista musicais. Acho que isso fica bem claro no álbum”, disse referindo-se a sua adolescência. Mas, se por um lado ela retoma as sensações da vida aos 17, durante a composição e gravação do disco a cantora teve a sua segunda filha Isadòra e a gravidez inspira canções como “Pleasure is All Mine” e “Submarine”.

Na última, por exemplo, ela fala sobre o sono que sentia enquanto carregava a filha dentro de si. “Chacoalhe-nos para que acordemos deste nosso sono pesado e profundo / Faça isso agora”. É interessante perceber a qualidade ambígua das letras das músicas nesse disco. Apesar delas emergirem de experiências pessoais de Björk, enquanto letrista, a cantora parece distanciar seus versos de imagens corriqueiras para ampliar o espectro de possíveis identificações. Há quem diga, por exemplo, que o “sono” ao qual ela se refere nesta canção é, na verdade, a cegueira norte-americana pós-9/11 representada por seu nacionalismo exacerbado (ela morou em Nova York enquanto criava Medúlla).

A estratégia, na verdade, é só mais uma representação do conceito que rege a obra como um todo: “Medúlla” é, evidentemente, a palavra em latim que originou medula, ou tutano: o líquido gelatinoso que preenche os ossos, é a matéria prima da nossa estrutura. Diferentemente de seus outros discos em que ela se posiciona sobre a relação da humanidade com o meio-ambiente (Volta, 2007) ou derrama-se sobre o início de uma paixão (Vespertine, 2001), Medúlla dedica-se a um nada fundamental. Um nada que compõe nossas complexidades, que define nossa existência. É um disco que recorre ao instintivo, ao corporal e ao inexato para lembrar-nos sempre de que somos mais humanos quando a racionalidade afrouxa e permite, assim, que a sensibilidade nos transforme. É “inaudível”, à primeira audição, porque entrar em contato com esses conteúdos é, sim, complexo. Mas, uma vez que encaramos o desafio, fica nítido que esse é talvez o disco mais democrático da Björk. Somos todos humanos e é sobre ser humano que Medúlla disserta brilhantemente.

(Medúlla em uma música: Oceania)

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