Resenhas

Blood Orange – Freetown Sound

Terceiro álbum do produtor britânico é carregado de política e da sonoridade oitentista

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Ano: 2016
Selo: Domino
# Faixas: 17
Estilos: Funk, R&B, Synthpop
Duração: 58
Nota: 4.5
Produção: Devonté Hynes

“Meu sobrenome Hynes provém do irlandês. É um nome de escravos, e significa, literalmente, servo. Eu tenho orgulho do meu nome, tenho orgulho do meu pai, tenho orgulho de minha família, mas é muito estranho ter que carregar isso… e todos nós carregamos isso, toda pessoa negra carrega isso.” Essa declaração do músico e produtor Dev Hynes, que se apresenta sob a alcunha de Blood Orange, está presente em sua faixa lançada em Julho de 2015, intitulada Do You See My Skin Through the Flames?, e coloca uma questão que é essencial para entendermos o contexto que se descortina como um pano de fundo para Freetown Sound: como é possível sentir orgulho de algo que simplesmente se é?

Sentir orgulho de alguma característica com a qual se nasce, e sobre a qual não se tem qualquer escolha, só pode ser compreensível no âmago de uma sociedade opressora, que discrimina indivíduos simplesmente por serem quem são, ou seja, que maltrata, por exemplo, alguns graças a cor de sua pele, e que exclui outros por conta de sua identidade de gênero ou sua orientação sexual. Nesse contexto, ter orgulho de ser quem se é, ou da história de seus descendentes, não só faz sentido, como configura uma arma poderosa de luta contra a repressão. É, na verdade, um mecanismo de sustentação, um pilar que reintegra a liberdade de pessoas que nunca deveriam ter sido excluídas da sociedade da qual fazem parte.

“Meu álbum é para todos aqueles que ouviram que não são negros o suficiente, ou que são negros demais, que são queer demais, ou que não são queer da maneira correta, essa é uma revanche” escreveu o produtor, antes do lançamento do mesmo, em uma publicação no Instagram. Com isso, Dev Hynes deixa claro do que se trata Freetown Sound: dar voz aos negros, aos membros da comunidade LGBT e também as mulheres, enquanto se coloca, ele mesmo, dentro dos territórios limítrofes e da tensão constante entre o que poderia significar “ser demais” e “não ser o suficiente”.

Esse não é um território necessariamente novo para Blood Orange. Seu álbum anterior, Cupid Deluxe, atentava para o universo transexual e para a juventude gay. Em 2015, além de Do You See My Skin Through the Flames?, o músico lançou a faixa Sandra’s Smile, uma composição inflamada pelo movimento Black Lives Matter, a respeito de Sandra Bland, uma mulher negra morta após ser detida em uma abordagem policial.

Todos esses aspectos ajudam a alinhar a trajetória de Blood Orange em direção ao que é hoje. Em Freetown Sound são as mulheres que tem voz. Ava Raiin, Empress Of, Nelly Furtado, Debbie Harry, Carly Rae Jepsen e a poetisa Ashlee Haze são apenas alguns dos nomes de peso presentes no álbum, um trabalho no qual constantemente a voz do próprio Hynes se trasmuta a fim de dar lugar a expressão das intérpretes convidadas.

Talvez também não seja por acaso que a sonoridade de Freetown Sound seja calcada na sonoridade negra dos anos 80, com o R&B de D’Angelo, um artista que também lançou um trabalho comburido pelo movimento Black Lives Matter, ou o funk de Prince, alguém que, por sua vez, ajudou a nublar os limites entre os diversos espectros da sexualidade humana.

O aspecto político da arte, se esta deve ou pode falar de política sem recair em contradições, é um assunto vasto e de dimensões profundas. Contudo, é inegável que essa abordagem tem sido uma das mais frutíferas para a música atual. Tomemos como exemplo o promissor cenário brasileiro, ou mesmo o nosso melhor álbum do ano passado, To Pimp a Butterfly, de Kendrick Lamar. É válido lembrar, no entanto, que as obras mais potentes não são apenas aquelas que falam ou que chamam a atenção para o tema, mas sim aquelas feitas por artistas que sentem na pele as dores de uma sociedade desigual. E “sentir na pele”, nesse caso, possui um peso simbólico muito maior do que qualquer acepção corriqueira da figura de linguagem.

Freetown é o nome da capital do país africano Serra Leoa, cidade fundada por escravos libertos e também a cidade natal do pai de Hynes. Freetown Sound, o álbum, é uma constante busca, através da descontrução, seja temática, seja sonora, do que faz Dev Hynes ser quem ele é. Porém, e retomando a declaração do artista do início dessa resenha, não se trata simplesmente disso, de ser em liberdade, mas também de sustentar sua descendência com orgulho, mesmo que isso signifique — ou justamente porque isso significa — fazer parte do lado oprimido de uma história controversa.

(Freetown Sound em uma música: Augustine)

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BOM PARA QUEM OUVE: Sampha, D'Angelo, Frank Ocean
ARTISTA: Blood Orange
MARCADORES: Funk, Ouça, R&B, Synthpop

Autor:

é músico e escreve sobre arte