Ouvindo este quarto trabalho de Blood Orange, alcunha artística do produtor e multitarefas Devonte Hynes, me lembrei de três monstros da música negra mundial: Prince, Stevie Wonder e Curtis Mayfield. A evocação destes sujeitos para servirem de norte explicativo pra um trabalho de um artista tão contemporâneo como Hynes é um sinal inequívoco de genialidade. Talvez Negro Swan seja um dos discos mais importantes e contundentes lançados em 2018. Pode ser pela opressão desencadeada pelo governo Trump, pelo retrocesso civilizacional que ele representa e pelo recrudescimento de vários fascismos ao redor do planeta. Mas – e digo isso com tristeza – é provável que o motivo seja velho: o preconceito em relação às minorias – um dos combustíveis dos fascismos e do próprio Trump como político. Seja o que for, a revolta e a crítica a ele é o combustível deste disco. E ele é explosivo.
Não pense que vai encontrar batidas dançantes que te levarão para a pista. Hynes propõe duas vias de apreciação: a lírica, que fala de como a vida de negros, LGBTs, fracos, pobres, minorias em geral, pode ser difícil e – perdoem o termo – fodida numa cidade grande ou numa comunidade conservadora – ou nos dois. A outra via é pela exuberância sonora que é proposta aqui. É música moderníssima, eletroacústica e eletrônica ao mesmo tempo, evocadora do melhor dos riffs e batidas que atestam a genialidade da música popular surgida pela ação dos negros em cidades grandes e suas periferias. Há ecos de guitarras chacoalhantes, teclados que flertam com os anos 1980 de forma inteligente, seja com o sintetizadores roqueiros como com elegantes pianos elétricos de gente como Steely Dan, por exemplo. Sendo assim, Negro Swan é belezura total, lírica e musicalmente falando.
O que distingue o álbum do que estamos acostumados a ver é a extrema inteligência e sensbilidade que ultrapassam o âmbito musical puro e simples. Há desconcertos intencionais ao longo das 16 faixas de Negro Swan, seja no aborto de canções normais que são interrompidas para mudar de andamento – caso logo da faixa de abertura, Orlando, que traz o dilacerante verso “first kiss was the floor” no refrão, aludindo a vários tipos de queda – figurada, literal – causados por bullying, briga, enfim, qualquer circunstância que suscite a necessidade de autodefesa diante de inimigos cruéis, bestializados e mais fortes. Outras faixas como Saint, Charcoal Baby e Chewing Gun não ficam atrás e exibem o mesmo panorama de formas alterntivas e nunca repetitivas. É tudo muito sério e cortante, ainda assim majestoso em sua moldura musical. Coisa para poucos.
Há R&B, Rap, Synthpop, samples, falas, depoimentos, tudo colocado num falso caos que joga a favor do álbum como conceito. Seu título vem da inteligentíssima mistura da ideia do cisne negro como um animal belo, porém isolado e raro, que é visto como distorção/diferença em relação a um padrão estabelecido. Hynes pega esta visão banal da e constrói o que poderíamos traduzir como “cisne preto”, depreciando as características do bicho intencionalmente e aplicando-as às todas as multidões que são alvo de preconceito por não-enquadramento em sistemas dominantes. Parece óbvio mas é praticamente genial.
Tudo por aqui faz sentido e suscita pensamento e reflexão de uma forma absolutamente natural e inevitável, algo que a música deveria sempre almejar/conseguir. Sem dúvidas, um dos discos do ano.
(Negro Swan em uma música: Orlando)