Resenhas

Caetano Veloso – Jóia

Com capa censurada pela ditadura militar, o LP se equilibra entre o experimentalismo prévio e a sensibilidade tocante do baiano naquele momento

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Ano: 1975
Selo: Phonogram/Philips
# Faixas: 13
Estilos: MPB
Duração: 39'
Produção: Caetano Veloso e Perinho Albuquerque

Após um período de três anos exilado em Londres, Caetano Veloso retornou ao Brasil em 1972, em um país marcado pela intensificação do aspecto autoritário e repressor característico do governo Médici. Com a intenção de assegurar a moral e os bons costumes, os militares visavam varrer qualquer vestígio de práticas que passassem de uma linha determinada de moralismo e, dessa forma, o departamento de censura atuava em sua plena potência, principalmente no âmbito cultural. Lutando contra formas fixas e pré-determinadas de expressão artística, Caetano gastou parte de sua energia criativa desse período procurando desconstruir ao extremo aquilo visto como “boa arte”, e essa passagem por Londres certamente contribuiu para que ele pudesse construir uma visão experimental em relação à sua obra.

Assim, o que se sucede em sua obra é uma experiência catártica e de gozo pleno de Araçá Azul (1973), marcada pela desconstrução e o título de “disco mais difícil de Caetano”. Entretanto, após esta súbita explosão, o compositor passou os dois anos seguintes no Rio de Janeiro, dosando esta energia experimental com construções e arranjos musicais mais usuais e típicos de seus primeiros discos. Desse exercício surge um projeto de lançar um disco duplo, um formato que Caetano atribuía a devida importância por conta dos discos que venerava (como o álbum branco dos Beatles e Songs In The Key Of Life, de Stevie Wonder). Ao mesmo, ele também criticava esse formato pela dificuldade de se administrar um conceito dentro de tantas faixas, fazendo com o que o ouvinte se perdesse com facilidade.  

No fim, o disco duplo foi dividido em dois e lançados ao mesmo tempo. Qualquer Coisa (1975) optou por conservar a sonoridade pré-exílio de Caetano, com canções e baladas de violão típicas dos discos da década de 60 (com exceção de Tropicália). Entretanto sobre Jóia, o mesmo não pode ser dito, já que neste o desejo de experimentação falou mais forte, uma marca que Caetano seguramente levou para o resto de sua carreira. De alguma forma, o contraste entre os nomes desses discos lançados em 1975 revela as intenções e predileções do artista, atribuindo um aspecto de preciosidade à sua obra mais complexa em oposição à causalidade de Qualquer Coisa. Podemos não ouvir um experimentalismo gritante e caótico como o de Araçá Azul, mas ele certamente está presente na forma como Caetano procura mesclar diferentes naturezas musicais e nos tocar tão profundamente com sua voz.

Dessa forma, Caetano entra em uma deliciosa contradição, quando diz que optou por mudar o formato do disco de duplo pelo simples, justamente para unificar melhor as faixas sob uma mesma direção artística e não perder o ouvinte. Contudo, “se perder” é uma das sensações comumente evocadas durante a audição de Jóia, não como sinônimo de confusão, mas em um sentido espiritual e transcendental. As palavras expressas na resenha do disco contida na edição 1 da revista Música do Planeta Terra se encaixam perfeitamente neste momento da carreira de Caetano:

“Caetano é um sintetizador[…] Pessoa do planeta, sua música transcendeu há muitos ideais das culturas nacionalista, as críticas racionais, sectárias. A música é orgânica, é pulsação, e Caetano pulsa junto com sua música […l”

Os arranjos de cordas, a predileção pela percussão acessória, experimentalismos tonais com sua voz, influência da música tribal do Xingu; todos esses fatores transformam Jóia em um laboratório onde Caetano acerta diferentes doses de diferentes gêneros para apoiar sua sensível poesia. Junto a isso, há participações pontuais no disco que contribuem com esta construção espiritual, como os violões de Gilberto Gil, as vozes do Quarteto em Cy e a percussão de Djalma Corrêa.

Vale lembrar que a conjuntura política da época dificultou o lançamento do disco, principalmente pela escolha da capa. A ideia original era uma pintura feita em cima de uma fotografia na qual estavam dispostos nus Caetano, sua esposa na época Dedé e seu filho Moreno Veloso, naquele momento com pouco menos de 2 anos. Depois, Caetano optou por cobrir sua genitália com pinturas de pombas (apesar da contracapa ainda conter nudez parcial). A capa fora imediatamente censurada após o lançamento e, para corrigir, o departamento exigiu que as fotografias/pinturas de Caetano e sua família fossem retiradas restando apenas as pombas, a tipografia e as pombas que antes o cobriam. A repercussão da capa e a dificuldade do lançamento refletiu não apenas nas vendas do disco (significamente menor que de seu disco irmão Qualquer Coisa) mas em consequências legais para Caetano e Dedé, que sofreram ameaças de perder a guarda de Moreno em decorrência da capa.

Jóia contempla músicas icônicas da carreira de Caetano. A abertura pontual com “Minha Mulher” entremeia seu violão com o de Gil, abordando os diferentes papéis da figura feminina em sua vida. “Guá”, por sua vez, desperta a influência indígena na percussão e coro harmonioso, funcionando quase como uma trilha ritualística. A imortal “Canto do Povo de um Lugar” funciona dentro do status quo de “hino de uma geração”, como um cântico de louvor para a natureza. A camaleônica voz de Caetano encontra seu auge em “Pipoca Moderna”, na qual funciona como aspecto percussivo da letra, ao mesmo tempo que se mistura com o moderno arranjo de cordas. A influência de Beatles fica clara não só na capa (na comparação da arte de Two Virgins (1968), disco de John Lennon e Yoko Ono), mas na versão repaginada de “Help”, assumindo uma roupagem mais Blues melancólica e tocada apenas no violão. Por fim, o samba invade o momento precioso de Jóia por meio da versão musicada de “Escapulário” , poema de Oswald de Andrade. 

Apesar dos entraves frente a ditadura militar brasileira, o disco resistiu e é, ainda hoje, uma experiência sensível que traz ao ouvinte uma constante sensação de estar suspenso no tempo. Este mesmo tempo é mencionado no Manifesto do Movimento Jóia que acompanhava o encarte do disco. Nele, Caetano disserta sobre as inspirações e críticas envoltas na composição e produção de Jóia, sem abdicar de uma linguagem poética para fazê-lo. Em um trecho específico, o compositor afirma sobre o propósito de desconstruir a idéia da música organizada por gêneros e décadas colocando este disco como composto, segundo ele, de “música posta contra aqueles que falam em termos de década e esquecem o minuto e o milênio”. Assim, Jóia não procura se limitar pelo escopo criativo da época, mas transitar entre diversos momentos passados, encontrando significado de sua sonoridade também no futuro. Caetano procura entender sua própria obra como atemporal, e talvez por isso este disco soe tão relevante até hoje.

(Jóia em uma faixa: “Canto Do Povo de Um Lugar”)

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MARCADORES: MPB

Autor:

Produtor, pesquisador musical e entusiasta de um bom lounge chique