Resenhas

Carne Doce – Princesa

Segundo disco é uma dissecação de traumas vivos, emoções e experiências

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Ano: 2016
Selo: Independente
# Faixas: 11
Estilos: Rock Alternativo, Experimental, MPB
Duração: 57:48
Nota: 5.0
Produção: João Victor Santana Campos

Há bandas cujo nome é tão certeiro e preciso que chega a nos assustar. Carne Doce é um desses abençoados casos. Vindo de um dos berços mais prolíficos da música brasileira, o grupo goiano marcou cedo sua presença com um dos discos mais arrebatadores de 2014, mostrando um íntimo e poderoso som, misturando nuances de Post-Rock com letras acidamente profundas e uma presença fantástica. A forma como a reprodução desse primeiro trabalho soava como uma verdadeira dissecação psicológica de um indivíduo foi o suficiente para causar uma tremenda ansiedade e angústia no público, aos primeiros sinais de que um novo registro estava sendo gerado. Pois bem; o disco saiu, mas a angústia ficou e nos deixou calados.

Princesa é uma nova dissecação, porém mais profunda. Ao reproduzir este disco, estamos imersos em um nível tão interior da personagem feminina em questão que conseguimos sentir e ver as feridas espalhadas por todo seu corpo, sejam elas físicas ou psicológicas. Cada faixa toma para si um trauma e o explora até ficarmos completamente esgotados, assim como a mulher que o sofreu. Não somos poupados em nenhum instante e, se em algum momento somos direcionados a encarar as músicas como calmas e doces, as letras logo nos expõem a crueza dessa carne. Assim, a construção do disco é feita de uma maneira que não permita um ouvinte atento sair da mesma forma que entrou em seu universo.

As composições sólidas acompanham os temas das letras, criando ambientações que retratem as dores das respectivas situações. A faixa Princesa constrói entre riffs de guitarras e baterias sólidas uma violência sutil, porém agressiva, tal como o abuso cotidiano retratado na ácida letra de Salma Jô. Sombra brinca com efeitos reversos como forma de retratar uma desorientação total ao ponto do suicídio ser a única e gratificante solução, afinal “O que cê tá esperando/O Vô tá te esperando”. Amiga e Eu Te Odeio suavizam os timbres, mas confortam um coração partido que encontra-se em dúvida, disparando frases contraditórias como “Eu nunca quis saber seu endereço/Quero te ouvir e já sinto saudade” e “A gente vai ter que terminar/Vamo por aí jurar para sempre”.

O Pai é uma das poucas faixas do disco em que o instrumental sucumbe à dor, fazendo de uma percussão fúnebre a cama para que um pedido da benção do pai finado seja atendida. Carne Lab pode não ter uma letra por toda sua extensão, mas os barulhos, texturas e sensações espalhadas pelos mais de dez minutos de música nos jogam no meio de um turbilhão de pensamentos da personagem, que tenta resolver seus traumas e questões. E Artemísia é a punhalada final em nosso peito, retratando o grito ecoante contra o mal olhar e o o preconceito sobre o aborto voluntário. Difícil não se emocionar com o bravo urrar reverberado de confiança: “É do meu querer”.

Depois desse turbilhão de emoções, seria fácil entender Princesa como um disco depressivo, mas as coisas não poderiam ser mais diferentes. Os episódios são encarados pela personagem com ímpeto e a dissecação, embora profunda e dolorosa, traz uma esperança ímpar que emociona com força e põe o álbum acima de um mero registro de áudio. Uma experiência fascinante que nos impulsiona a partir de uma degustação azeda de uma carne, que findada se revela adocicada. Uma carne doce. Uma obra definitiva.

(Princesa em uma faixa: Artemísia)

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BOM PARA QUEM OUVE: Lupe de Lupe, Metá Metá, Baleia
ARTISTA: Carne Doce

Autor:

Produtor, pesquisador musical e entusiasta de um bom lounge chique