Resenhas

Cesar Lacerda – tudo tudo tudo tudo

Cantor e compositor mineiro lança disco inteligente e delicado

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Ano: 2017
Selo: YB Music / Circus
# Faixas: 10
Estilos: Pop Alternativo, MPB, Folk Alternativo
Duração: 33:21
Nota: 4.5
Produção: Elisio Freitas

Uma simples olhadela nos jornais e na Internet vai nos dizer: vivemos tempos de brutalidade. Por quase todos os lados, lemos, vemos, percebemos e sentimos que, de alguma forma estranha, as coisas preciosas e que custaram anos de dedicação e empenho, podem estar de partida de nossas vidas. E das dos outros, que, em sua maioria, não parecem se importar. De alguma forma, parece que precisamos de lucidez, pé no chão, respirar fundo e olhar pra frente, lembrando o caminho que nos trouxe até aqui. Precisamos de delicadeza, entrelinhas, pormenores, tons intermediários. Este terceiro disco do mineiro César Lacerda, é uma espécie de tributo à gentileza, à candura, à atenção. É um eco ainda solitário num país que parece ter sofrido um imenso acidente banalizado todos os dias, numa situação que lembra um verso de Caetano Veloso, no qual ele dizia que “somos cegos de tanto ver”. Digressões à parte, tudo, tudo, tudo, tudo é uma voz forte em carinho e afeto que se levanta do lodaçal e brada sobre possibilidades que pareciam desparecidas. É sério, mas é doce e brando, como convém.

Um detalhe se faz necessário na apreciação deste belo disco: não confunda candura com bundamolice, algo que, felizmente, jamais aparece ao longo das dez faixas. Num tempo como o nosso, é preciso firmeza e serenidade para investir na fala doce, pausada, no uso dos silêncios, na abordagem pausada das coisas. Em muitos aspectos, musicais e comportamentais, César chega a evocar o clima da Bossa Nova, que surgiu num tempo menos irracional, porém, era calcada nessa “inteligência da gentileza”, algo muito efetivo e que ressoa nas mentes até hoje. Com a produção de Elísio Freitas, este álbum tem total coerência em seus arranjos e resultado final, fazendo com que Lacerda se firme como um artista brasileiro com diferencial, daqueles que a gente identifica logo que ouve. Sua verve como cantor é a de aparente fragilidade, que vai mostrando força e resistência à medida que as canções avançam por seus discos. Aqui não é diferente.

Se há algo que distingue tudo… em relação aos trabalhos anteriores, certamente é a coesão das canções e sua sintonia em torno deste brado pela serenidade, algo que pode ser um conceito subterrâneo por aqui. Isso Também Vai Passar, a impressionante canção de abertura, seguramente uma das melhores escritas e gravadas em português neste ano, é uma pequena-grande reflexão sobre a passagem/relatividade do tempo, esse bem realmente precioso em nossas vidas. César percebe as diferentes considerações sobre sua passagem, medindo a importância das coisas por quanto elas duram em nossas vidas, chegando à conclusão filosófica de que tudo vai passar. Ele vai enfileirando medos, certezas, harmonia, caos e até temas políticos absolutamente necessários, como o atual governo, a falta de dinheiro e a crise política que vivemos, no ról de coisas que não resistem à passagem do tempo. Com ela, César situa o ouvinte neste contexto, preparando-o para o que vem nas outras faixas.

Apesar de ligeiramente inferiores, as outras nove canções são, a seu modo, ainda muito boas. Temos um abraço de Bossa Nova “velha” em Me Adora, cover para uma conhecida gravação de Pitty, ornada com sopros, violões e delicadeza total. Um samba praiano e apaixonado surge em O Marrom Da Sua Cor, certamente uma música que não é dos nossos tempos, brejeira e doce. O bom uso dos violões e da linguagem Folk surge totalmente inserida numa brasilidade de inconsciente coletivo das décadas de 1970/80, algo que fica bem nítido em Por Que Você Mora Assim Tão Longe? que, apesar do invólucro musical evocar tradição, tem letra falando em teletransporte e rompimento das fronteiras espaciais. O mesmo acontece com O Fim da Linha, lenta, que brinca com climas e silêncios, com destaque para o bom uso de metais. Outra belezura de canção é Por Um Segundo, que traz imagens de um encontro casual de dois futuros amantes, num olhar que se chama “teleológico” em algumas disciplinas mais cabeçudas das Ciências Sociais. Um arranjo mais Pop dá as caras em Sei Lá, Mil Coisas, dando a ela uma cara de anos 1980, preparando o ouvinte para o fim do disco, que chega com O Homem Nu e a lindíssima Percebi Seus Olhos Em Mim, pianística, noturna e doce.

César Lacerda reafirma seu talento com este novo trabalho, se credencia a ocupar um posto de protagonismo nessa cena esvaziada de boas cabeças realmente pensantes. Boa voz, excelente compositor, Lacerda é um cara necessário para, quem sabe, mudarmos tudo o que aí está? Uma hora isso vai acontecer.

(Tudo, Tudo, Tudo, Tudo em uma música: Isso Também Vai Passar)

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.