Sabe toda aquela velha história do sincretismo no Brasil e de como o povo brasileiro aceita as diferenças raciais, religiosas e regionais numa boa? Se cada vez mais isso me parece uma grande falácia encobertando um preconceito velado, a arte vem talvez para me desmentir, talvez para me dar esperanças que isso ainda seja possível. Digo tudo isso porque, de certa forma, a música do quarteto goiano Chá de Gim pode ser um pequeno passo nessa direção de maior aceitação e – por que não? – de Comunhão. Ainda assim, um passo muito importante.
Através de oito músicas que brincam de “psicodelizar” ritmos tipicamente brasileiros (como Samba, Baião, Música Caipira, Xote e Forró), Comunhão sinaliza nesse caldeirão de regionalismos a real aceitação entre as pessoas de um mesmo povo. Dar o play na obra é, por pouco mais de meia hora, aceitar essas diferenças e perceber que, no fim das contas, somos todos parte de algo muito maior. “E o que é normal se cada um tem uma crença?/E o ser humano só igual em ter diferença”, canta o grupo em Dropei.
Não bastasse essa comunhão de estilos, temas como religião (Cordeiro do Mundo) e empatia (Dropei e Zé) surgem aqui por meio de uma lírica poética e bastante ritmada, como só os ritmos brasileiros se permitem a ser. Na abertura, Maracujá, o quarteto chega de mansinho em um convite ao despertar para esse panorama de falta de aceitação e simpatia com versos como “Despertar sem despertador/Devagar, me espreguiçar/ e o que eu sinto é um imenso sossego”, além de um convite a uma vida mais parcimoniosa (“Gente correndo de lá pra cá/ passam batido, não veem passar o que de bom a vida tem pra dar/ E o presente fica pra trás, com tanta pressa que já não há paz/ Até que a vida um dia então passou).
O disco continua discutindo essas situações na roqueira Dropei e na tão nordestina Baião, um contraste interessante entre músicas que usam recursos sonoros tão diferentes para corroborar uma mensagem tão semelhante. Há também espaço para o amor no álbum, com a bela faixa de Benzim. Desplugada, a singela música usa o calor dos instrumentos de corda e uma percussão leve para criar um clima aconchegante a uma letra tão desesperançosa.
A dupla final de músicas fecha o disco escancarando essa mensagem. O poema A Benção denuncia a situação inexorável de diversos brasileiros que convivem com a violência, miséria, fome e descaso. A banda faz isso brilhantemente antes de entoar o verso “O Zé se num esquece quem sou eu/Meu nome é Zé igual ao teu/Da mesma carne, o mesmo pão/Dois em um, bem mais que irmão” em Zé. Um pedido desesperado de empatia quando um dos interlocutores se vê em frente a uma situação desesperadora com o outro Zé.
Voltando ao tal sincretismo e aceitação dos diferentes, Comunhão é um disco certeiro ao discutir esses assuntos de forma aparentemente branda. Ele mostra também que em torno da tão celebrada nova psicodelia de Goias há muito mais que a pura hype, há muito conteúdo, há a celebração da diferença, do que não se encaixa, dos Zés. Em tempos de Bolsonaros e Malafaias, essa é uma mensagem necessária e um álbum que devolve um pouco da fé em um futuro pelo menos mais empático.