Resenhas

Charli XCX – CRASH

Quinto disco da artista britânica é uma verdadeira homenagem ao pop, evidenciando contradições, clichês, exageros e particularidades que tornam o gênero tão magnético

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Ano: 2022
Selo: Asylum/Atlantic/Warner UK
# Faixas: 12
Estilos: Pop
Duração: 33'
Produção: George Daniel, A. G. Cook, Lotus IV, Deaton Chris Anthony, Oscar Holter, Digital Farm Anima, lsIan Kirkpatrick, Justin Raisen, Sadpony, Ariel Rechtshaid, Daniel Lopatin, Mike Wise, Dopamine

Foi-se o tempo em que o pop era sinônimo de superficialidade e de pouca inventividade. De uma forma ou outra, esse macro gênero sempre esteve na mira da crítica, servindo de exemplo da suposta falta de profundidade e complexidade musical em oposição a outros gêneros – e, obviamente, nessa brecha, são expressos todo tipo de comentário preconceituoso, utilizando a música como uma justificativa para dar vazão ao ódio interno. Entretanto, a verdade não poderia ser mais diferente: o pop é um organismo vivo que funciona com regras próprias e completamente imprevisíveis. Inclusive, chamar o pop apenas de gênero, por si só, já limita suas reais demandas e complexidades. Assim, o pop é constantemente reinventado à luz de novas informações, tendências e acontecimentos mundiais – um verdadeiro camaleão cultural. E sua face musical apresentou e apresenta uma série de produtores que procuram compreender quais são os limites que o pop abriga. Nos anos de 1960/70 tivemos a Motown definindo uma estética e trazendo arranjos extremamente complexos para hits radiofônicos. Nos anos 1990, Max Martin e sua trupe de produtores suecos construíram o som do futuro com sua lista assustadora de hits de Britney Spears, N’Sync e Backstreet Boys. Nos 2000, houve a aproximação com o hip hop e, na década passada, Phineas e Billie Eilish demonstraram a crescente complexidade do pop com o minimalismo preciso, mostrando que há espaço para o silêncio.

Dentro desse clube do bolinha, Charli XCX é um dos nomes recentes que mais exploram os limites do pop. Charli é uma artista dos anos 2010, uma década marcada por uma nova relação da música com a tecnologia de consumo e, após um período de lua de mel com o indie pop (na sua era True Romance (2013) e Sucker (2015), ela foi encontrando cada vez mais espaços para que o glitch hop e a PC Music pudessem se mesclar às sua referências. O que se seguiu foi uma série de mixtapes e discos caprichados nos exageros do digital, que teve como uma de suas expressões máximas o colossal Vroom Vroom EP (2016), produzido por SOPHIE. Recentemente, Charli deixou o experimentalismo voraz de lado para focar em álbuns mais centrados no que seria considerado um pop padrão e farofa – vestindo a caricatura da pop star como uma espécie de armadura contra a rigidez e o pedantismo musical. Agora, encontramos a produtora e compositora com, praticamente, uma década de estudos do pop consolidados e o que antes se configurava como um movimento desenfreado pelos diálogos e intersecções, cede espaço para uma obra mais focada. Após tanto tempo estudando o pop, Charli apresenta sua tese final: CRASH.

O quinto disco de estúdio de Charli é um verdadeiro compilado dos diferentes aprendizados colecionados ao longo de sua carreira. Portanto, atravessar as 12 faixas deste disco (16, se considerarmos a edição deluxe) é experimentar as diferentes possibilidades do pop. Entretanto, além desse experimentalismo característico de sua obra, CRASH evidencia os clichês do pop – aqueles mesmos elementos que foram tão criticados, lá atrás, por se afastarem de uma suposta “seriedade” musical. Charli enxerga este momento como uma oportunidade para reafirmar a figura da pop star caricata. Os exageros, as fórmulas prontas, as melodias pegajosas: tudo tem validade preciosa na construção desta estética. Alguns fãs chegaram a pontuar que esta nova fase seria um comentário irônico a respeito de sua situação com a gravadora, como um momento de libertação criativa, uma vez que este é o último disco dentro do contrato. O clipe do primeiro single, “Good Ones”, parece reforçar esta ideia, com Charlie realizando seu próprio funeral e encerrando uma era de experimentalismo pop. O próprio nome do disco e o fato de Charli estar toda machucada e ensanguentada não deixa de ser uma crítica à indústria. Apesar de ser devota do pop, a produtora e compositora inglesa compreende as contradições e problemáticas do gênero.

Nesse misto de assumir o pop pela farofa que ele é de fato, mas também fazendo uma crítica pontual, CRASH traz exemplos de como o pop serve a Charli de diferentes maneiras. “New Shapes”, que conta com a participação de suas grandes amigas Christine and the Queens e Caroline Polachek, traz as baterias digitais dos anos 1980 a serviço de uma abordagem dançante e repleta do brilho neon. “Constant Repeat”, por sua vez, encarna o futurismo exagerado dos 2000, sem economizar nos sintetizadores e efeitos. Em parceria com Rina Sawayama, “Beg For You” é um híbrido das batidas ácidas dos anos 1990, mas com a cremosidade das melodias dos anos 2000, trazendo uma referência/homenagem ao hit de 2007, “Cry For You”, de September. “Baby” tem o experimentalismo mais evidente, não sacrificando o groove dançante no meio de tantos timbres e sons diferentes – algo que retoma um pouco sua fase Pop 2 (2017). É curioso que em “Yuck”, Charli também aborda as tendências funky e disco do pop TikTok contemporâneo, em uma ambientação suave e repleta de suingue. Por fim, “Twice” encerra o repertório da única forma que um trabalho contemporâneo pop poderia: com uma batida trap perfeita para algum TikToker de 17 anos viralizar com uma dancinha.

Reunindo um time de produtores que procura reafirmar a visão ambiciosa de Charli XCX, CRASH é como um resumo dos últimos (ou primeiros) 10 anos de carreira da artista britânica. Diferente de uma compilação no formato “greatest hits”, o repertório apresenta as variadas personalidades e intenções de Charli, em uma homenagem apropriada a seus anos de dedicação aos estudos do pop – nos quais crítica e devoção compartilham o mesmo espaço.

(CRASH em uma música: “Beg For You (feat. Rina Sawayama)”)

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ARTISTA: Charli XCX

Autor:

Produtor, pesquisador musical e entusiasta de um bom lounge chique