Resenhas

Childish Gambino – 3.15.20

Álbum aglutina as diversas características de Donald Glover em um registro insólito e propositalmente caótico

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Ano: 2020
Selo: RCA/Sony Music
# Faixas: 12
Estilos: R&B, Indie R&b
Duração: 57’
Produção: Donald Glover, DJ Dahi, EY, James Francies, Ludwig Göransson

A capa em branco e as músicas sem nome logo denunciam: 3.15.20 não é um disco qualquer. Quem acompanha a carreira de Donald Glover como Childish Gambino já viu o artista mergulhar em um Soul com toques psicodélicos (em seu álbum anterior, Awaken, My Love, de 2016) e brincar com diferentes lados do Hip Hop, do mais pop e dançante (em “Sober”, por exemplo) à face mais agressiva, como no hit “This Is America”. Com novidades bem recebidas a cada lançamento, não é de se surpreender que o artista faça questão de trabalhar novamente com grande liberdade.

É possível que todo 3.15.20 seja uma resposta criativa ao que “This Is America” acabou se tornando. A música e seu clipe causaram uma dobra no tecido cultural em 2018, conseguindo atingir o status de “acontecimento” dentro de uma cultura Pop cada vez mais difícil de ser impressionada. Seu single seguinte, “Feels Like Summer”, cumpriu com louvores a função de ser um lançamento digno do nome Childish Gambino, embora claramente não tivesse a mesma pretensão do lançamento anterior..

O mesmo clima está presente em todo o novo álbum, que não tenta agradar o ouvinte logo de cara. Pelo contrário, é o tipo de obra que provoca um estranhamento intencional que vai se dissipando aos poucos, à medida que a audição se desenvolve. Ele abre com “0.00”, uma introdução instrumental e etérea que desemboca em “Algorhythm”, faixa carregada de efeitos e beats pesados com uma mensagem distópica e o convite à dança como alívio à condição humana. Dá a impressão de que podemos estar diante de uma versão Childish Gambino para FutureSex/LoveSounds, que Justin Timberlake lançou em 2006.

Em seguida, “Time” traz um clima psicodélico e o vocal de Ariana Grande para esse universo pós-apocalíptico (em versos como “seven billion people tryna free themselves / said a billion prayers / tryna save myself  / I can see it coming / but it’s moving fast”). Após essa trinca introdutória, tensa e um tanto pessimista, 3.15.20 deixa de se preocupar com nomear suas músicas (batizadas de acordo com a minutagem do disco) e passeia livremente pelo que bem entende fazer.

Há um Rap com 21 Savage, Ink e Khadja Bonet (“12.38”) que começa quase minimalista e ganha cada vez mais corpo ao longo de seus seis minutos e meio de duração. Depois, “19.10” tem vibe dançante e a chance de ser o maior (talvez único?) hit do disco. Elas deixam claro que, se no início a sonoridade parecia querer flertar com um Pop mais agressivo, lembrando em alguns momentos as faixas mais tensas de Billie Eilish, o álbum habita um território que evoca ora The Weeknd, ora Frank Ocean, chegando às vezes até Kanye West.

Para além dos vocais processados e beats bem escolhidos, há várias pequenas surpresas e contrastes ao longo da narrativa, e o ouvinte logo entra na dinâmica de entender que uma faixa nem sempre termina como começa. É o caso de “24.19”, balada R&B com ares românticos e comportamento errático. Ela traz um dos melhores momentos no disco de Glover como intérprete, cantando sobre um amor que não merece até o seu clímax, quando ele assume a reciprocidade na relação. Mas a faixa não acaba aí e seu minuto final traz um som ofegante com uma grave pulsação atrás – uma simulação de coito que pouco tem a ver com a harpa angelical presente na música.

As mudanças de humor acabam sendo uma das marcas registradas da obra, o que também colabora para o já mencionado estranhamento. Em um momento, o ouvinte se percebe curtindo a animada “35:31”, canção de sorriso fácil e clima que se assemelha aos momentos mais Pop do passado de Donald. No outro, o piano e o vocal em falsete ajudam a desenvolver uma estrutura complexa que deixaria Freddy Mercury orgulhoso (“39.28”).

Antes do fim, o ouvinte encontra “Feels Like Summer” em um novo habitat – e título, já que ela agora foi batizada “42.26”, de acordo com a identidade do disco. Ela e a seguinte, “47.48”, são responsáveis por uma das únicas transições coesas entre uma faixa e outra desde a introdução do álbum. “53.49”, a última do repertório, traz clima apoteótico com o artista sendo desafiado em notas, alcances e aberturas limítrofes para seu vocal.E ela encerra 3.15.20 com muito acontecendo, apesar da clara sensação de que o disco terminou menos caótico (ou “mais Pop”) que seu meio. Assim como foi escolhido para a capa o branco – que é a soma de todas as cores – o álbum sabe adicionar as mais diversas características de Glover, em interpretação, composição e escolhas de produção. Ele é o diretor com sua câmera, ou o mestre de cerimônias que guia o ouvinte não por uma mera audição, mas na construção daquilo que entendemos como Childish Gambino.

(3.15.20 em uma faixa: 24.19)

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Autor:

Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.