Resenhas

Manu Chao – Clandestino

Com três inéditas, a reedição do disco continua relevante misturando luta e alegria por meio da intensidade e da curiosidade de Manu Chao

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Ano: 2019
Selo: Because Music
# Faixas: 19
Estilos: Rocksteady, Rap, Reggae, Salsa, World Music
Duração: 52'
Nota: 4.5
Produção: Renaud Letang, Manu Chao

Após o fim do Mano Negra e o término igualmente traumático com uma namorada de longa data, Manu Chao partiu em uma viagem pela América Latina munido de uma guitarra e de um gravador de oito canais. A saga do parisiense, que, à época, também passou pelo continente africano, além de arejar a mente conturbada – alguns amigos preocupados acreditavam que ele estava com tendências suicidas –, resultou em uma imersão intensa no universo musical latino. O saldo da fossa, do desamparo e da curiosidade de Manu Chao foi o clássico Clandestino (1998), que acaba de ganhar uma edição especial com três faixas inéditas, além do repertório original. 

Também por conta do pouco investimento em marketing feito pela Virgin, a aventura inaugural do músico longe da banda que o revelou não foi grande sucesso de mercado na época de seu lançamento, chegando “apenas” ao 19º lugar das paradas francesas. Mas bastou um ano para que a explosão criativa de Manu Chao conquistasse os ouvidos de milhões de admiradores ao redor do mundo. Ao lado do Buena Vista Social Club, que havia lançado seu celebrado disco de estreia no ano anterior, ele se tornou – para contrariedade do próprio – um dos símbolos, durante o fim da década de 1990, do que a crítica especializada costuma chamar de World Music. 

O termo, claro, não é suficiente para descrever o que Manu entregou já logo no primeiro disco solo. Entretanto, além de se tratar de um trabalho feito por um parisiense (filho de espanhóis) embebedado de influências latinas, é impossível tentar definir a(s) sonoridade(s) sem prejuízo. O que torna até justa a ideia de dizer que Clandestino, assim como seu criador, escapou com naturalidade de tantas fronteiras e simplesmente pertence ao mundo. E, se o homem é um tanto produto do ambiente, a música de Manu deixa claro que, no período, ele andava bastante por aí.

Mas, se a mescla entre Punk Rock/Ska e Salsa/Flamenco/Música Eletrônica do Mano Negra era um tanto desordenada, aqui, o líder do grupo parece disposto a dar coesão ao seu caleidoscópio criativo. E isso se dá pela devoção ao universo latino, que serve de cola quando o músico se aproxima com competência do Reggae, do Ska ou do Rap. A sequência inicial é arrasadora. Com os versos mais marcantes da carreira do cantor (“Solo voy com mi pena / solo va mi condena / correr es mi destino / para burlar la ley”), a faixa-título já nos insere na atmosfera bandoleira do disco. “Desaparecido” segue a mesma linha, antes da bem-humorada e esfumaçada “Bongo Bong”, versão do Mano Negra, que chega grudada com “Je Ne T’aime Plus”. 

A melancolia e a solidão do viajante servem de contraste nas belas baladas acústicas “El Viento” e “La Vie”, e ganham um tempero dançante em “Luna Y Sol”, uma Salsa-Meio-Eletro que abre com Manu dizendo que “tudo é mentira nesse mundo”. Uma das grandes canções do disco, aliás, é a política “Mentira”, com riff de guitarra hipnotizante e linhas de metais fazendo a cama para a voz nasalada de Manu alternar entre versos pegajosos e declamações que soam como sermões da montanha.

A edição comemorativa traz uma versão repaginada de “Clandestino”, com toques afro-caribenhos do Calipso, amparada por metais e com a participação de Calypso Rose, lendária cantora e feminista de Trinidad e Tobago. Ela adiciona o poderoso verso “a terra em frente não me quer, a terra atrás de mim queima”. Os outros acréscimos são as inéditas “Bloody Bloody Border”, um Rocksteady cantado em inglês cujo tema são os terríveis campos de migrantes no Arizona, e a angustiada “Roadie Rules”, composta na época das viagens pós-fim do Mano Negra.

Além de arar e muito o terreno para o disco Próxima Estación: Esperanza (2001), que emplacou o hit “Me Gustas Tu”, Clandestino serviu como um manifesto solidário e contagiante de um artista talentoso que estava em formação e, meio que literalmente, perdido pelo mundo. É político, sem ser excessivamente panfletário, e é divertido, sem soar bobo. Quem sabe por isso ainda consiga encantar novas gerações – são impressionantes mais de 37 milhões de visualizações no vídeo do álbum completo que persiste no YouTube – e tenha se tornado uma daquelas obras atemporais. Porque, da mesma forma que o clandestino encarna o “sou de lugar nenhum”, o viajante encarna “sou de todos os lugares”. E peregrinar, especialmente pela América Latina – com a intensidade e a curiosidade de Manu Chao –, sempre vai inspirar luta, mas também alegria. 

(Clandestino em uma música: “Clandestino”)

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ARTISTA: Manu Chao
MARCADORES: Rap, Reggae