Resenhas

Erykah Badu – Mama’s Gun

Fruto do encontro entre os Soulquarians, segundo álbum incrementa propostas da estreia e é um clássico que consolida Badu na linha de frente do R&B contemporâneo

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Ano: 2000
Selo: Universal/Motown Records
# Faixas: 14
Estilos: R&B, Rap, Jazz, Soul
Duração: 71'
Produção: Erykah Badu, James Poyser, Questlove, J Dilla, Jah Born Jamal, Jah Born Allah, Stephen Marley, Viktor Duplaix

As coincidências acontecem com frequência no universo de Erykah Badu. A artista descobriu que estava grávida do primeiro filho pouco tempo depois de lançar o disco de estreia, Baduizm, em fevereiro de 1997. Nove meses depois, lançou o álbum Live, no dia 18 de novembro de1997 – data de nascimento de Seven Sirius Benjamin, único herdeiro do relacionamento da cantora com Andre 3000, metade do Outkast.

Badu esteve ao lado do filho todos os dias durante os dois primeiros anos da vida de Seven Sirius, incluindo a época em que atuou no filme The Cider House Rules (1999) e gravou o aguardado segundo disco. O primeiro trabalho vendeu três milhões de cópias e venceu dois Grammy. As expectativas estavam altas para Mama’s Gun, que, mesmo vendendo a metade do que seu antecessor vendeu, atingiu tudo o que se esperava de um segundo disco de Badu, indicada novamente ao Grammy, em três categorias. “Pensei que fosse o meu ápice, mas ninguém achou isso”, disse a cantora em entrevista à revista New Yorker em 2016.

Não há dúvida, Mama’s Gun apontou os caminhos para o futuro e consolidou Badu como artista para além de seu tempo. Importante ressaltar o clima da época de estúdio: as músicas foram gravadas pelo engenheiro de som Russell Elevado no Electric Lady Studios, em Nova York, espaço fundado por Jimi Hendrix nos anos 1970. O experiente produtor usou equipamentos vintage nas sessões, adicionando certa textura analógica no produto final, em referência a discos de gigantes do soul, como Stevie Wonder, Chaka Khan e Nina Simone

Na mesma época, Elevado trabalhava em dois discos que também marcariam o som do novo milênio e esse período efervescente do neo soul e suas adjacências no mundo do hip hop: Voodoo, de D’Angelo, e Like Water For Chocolate, de Common. O produtor gravava os três discos simultaneamente nas salas do Electric Lady, além de atuar na mixagem de cada um deles. Essa turma construiu um movimento/coletivo poderoso, breve e muito moderno: o Soulquarians, apelido carinhoso para esses artistas nascidos com Sol em Aquário – Badu, Questlove, D’Angelo e J Dilla. Além dos aquarianos oficiais & originais, nomes como James Poyser, Q-Tip, Roy Hargrove e Mos Def deram as caras durante esse período mágico no Electric Lady.

A colaboração mútua era, portanto, natural. Por exemplo, J Dilla (1974-2006) assina a coprodução com Badu em duas faixas. Em uma delas, “Didn’t Cha Know”, Dilla sampleou “Dreamflower”, do grupo de Jazz Tarika Blue. Essa foi a primeira vez em que Badu se escorou profundamente em uma produção baseada em sample – por influência de Dilla. Em entrevista ao Red Bull Music Academy, a cantora diz que visitou a casa do “cientista”, como costuma se referir ao produtor de Detroit, e escolheu o disco depois de se aventurar pelo enorme acervo do, àquela altura, futuro amigo. O resultado não poderia ter sido mais certeiro: o primeiro minuto do instrumental em loop aquece os motores para o vocal delicado, mas assertivo, em um dos pontos altos do registro. A faixa foi trabalhada como segundo single do disco, chegou ao #28 na parada da Billboard e foi indicada a Melhor Canção de R&B no Grammy de 2001.

Já em “Cleva”, J Dilla e Badu partem para o soul jazz, criando uma atmosfera intimista, na qual a cantora explora, com honestidade e sabedoria, assuntos cotidianos. O toque a mais fica por conta do som das notas do vibrafone de Roy Ayers, gigante do jazz e colaborador assíduo da cantora. Com 10 produtores à disposição, o repertório tem momentos brilhantes de uso de samples, como em “Bag Lady”, cuja guitarra – mais tarde reutilizada por Dr. Dre em “Xplosive” – vem de “Bumpy’s Lament”, tema criado pelo inigualável Isaac Hayes para a trilha de Shaft (1971).

Carro-chefe do álbum, foi o último single da Motown Records a chegar ao topo da parada de R&B antes da gravadora se fundir com a Universal. Sensível, crescente e arrebatadora, “Bag Lady” fala sobre a bagagem emocional que levamos na vida – mas, ao final do dia, tudo o que precisamos levar é nós mesmos. E não se esqueça de sempre “pack light”, ou seja, na dúvida leve menos bagagem. O clima de fim de namoro e de novas descobertas dá o tom de algumas nuances do disco, mas Mama’s Gun está longe de ser (apenas) um disco sobre términos.

Além de estar em um novo momento na vida, Badu completaria 30 anos de idade e escreveu as letras a partir de um ponto de vista mais maduro. Em entrevista ao New York Times em 2001, ela disse que o próprio título do disco tem a ver com essa fase: “Me tornei mãe e percebi que meu filho vai precisar de proteção quando ele for para o mundo. E não há melhor proteção do que a palavra das mães. O álbum é a arma: use essas palavras, esses sentimentos, para resolver os problemas”. A calorosa e acolhedora “Time’s a Wastin”, com um arranjo encorpado de cordas, fala sobre o ímpeto de aconselhar e zelar, mas é embalada em ritmo suave, enquanto Badu entoa “estamos vivendo em um mundo tão estranho / menino, não mude de foco”.

O universo de símbolos da compositora passa também por um tipo de feminismo não mainstream, uma potência conectada à natureza e que assume dúvidas e fragilidades, afinal, elas também fazem parte do curso da vida. Cada faixa representa um pequeno instante de humor, feito para despertar algum tipo de sentimento. A letra da epopeia “Green Eyes”, que encerra o disco, fala sobre inseguranças e decepções – “changed my name do Silly E Badu”. Com o mood de fim de noite em bar de jazz, como se a banda estivesse aberta ao que pode surgir desse encontro, os vocais da cantora emanam a vibração do que alguns jornalistas gringos chamam de “o encontro de Billie Holiday com ritmo de Rap”.

 

Mapa de referências

Em texto sobre o disco publicado na Pitchfork, a autora Daphne A. Brooks, escritora e professora de Estudos Afro-Americanos na Faculdade de Yale, ressalta também o importante legado do videoclipe da música “Bag Lady”: “indiscutivelmente a primeira música pop de um artista afro-americano a envolver abertamente imagens de uma obra clássica da literatura feminina negra”. A referência do vídeo é um tributo ao poema For Colored Girls Who Have Considered Suicide When the Rainbow Is Enuf (1975), da escritora americana Ntozake Shange.

Em “A.D 2000”, Badu faz homenagem ao jovem Amadou Diallo, assassinado a tiros por policiais em Nova York. “Sua elegia de coração partido, mas de olhos claros para A.D é, na verdade, uma canção que tece a profunda tristeza que surge do reconhecimento sobre o quão pouco a vida negra importa na cultura americana. Na esteira da absolvição dos quatro policiais à paisana que tiraram a vida de Diallo, Badu canta uma canção para ele e para a era pós-morte, na qual nenhum monumento marcará o falecimento dos mortos pelas mãos do estado”, escreve a especialista. Ao refletir sobre “o perigo, o trauma e a tragédia comuns dos negros”, Badu cria narrativas que falam sobre a vida urbana, a brutalidade policial, relacionamentos ruins e as vozes opressivas que existem dentro da cabeça.

Entre outras referências, a faixa de abertura “Penitentiary Philosophy”, que começa com o áudio de uma lista de tarefas e explode com um instrumental psicodélico à la Funkadelic, conta com sample de “Ordinary Pain”, de Stevie Wonder, do clássico Songs in the Key of Life (1976). Em entrevistas, a cantora disse que a letra surgiu a partir de um freestyle quando estava no estúdio com os parceiros James Poyser e Questlove, mas logo descobriu aonde queria seguir com a narrativa: “Fico brava quando te vejo triste / com o mesmo olhar que a sua mãe tinha / Mas você não vai vencer se a sua vontade for fraca”.

Se no disco de estreia Badu fazia uso de figuras de linguagem para dizer o que estava sentindo, em Mama’s Gun, a aposta (certeira) é em uma abordagem mais direta, percorrendo problemas universais, crônicas cotidianas, desabafos e declarações. Suas influências sonoras propõem encontros entre gerações – em “… & On”, continuação do “On & On”, hit do primeiro álbum, ela se autodenomina “uma garota analógica em um mundo digital”. A dosagem é tão cirúrgica e as referências tão bem aproveitadas que o segundo álbum de Badu, com 14 faixas desamarradas estilisticamente – mas coladas de forma magistral –, tornou-se um clássico. Livre como sua criadora, o disco flutua e desliza entre climas que expressam a identidade ímpar de Badu. Fluidez e calma são marcas registradas da voz que canta sobre a vida adulta de forma serena, sem pressa para ceder a pressões dos dramas do dia a dia.

(Mama’s Gun em uma faixa: “Didn’t Cha Know”)

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ARTISTA: Erykah Badu

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