Resenhas

Erykah Badu – New Amerykah Part One (4th World War)

Letras afiadas, uma boa dose de hip hop (em meio a soul, funk e R&B) e o álbum politicamente mais carregado da discografia de Badu

Loading

Ano: 2008
Selo: Universal/Motown Records
# Faixas: 11
Estilos: R&B, Neo Soul, Rap, Funk
Duração: 58'
Produção: Roy Ayers, Erykah Badu, Mike, "Chav" Chavarria, Edwin Birdsong, William Allen, Madlib, Sa-Ra, Karriem Riggins, Taz Arnold, Georgia Anne Muldrow, Om'Mas Keith, James Poyser, Questlove, 9th Wonder

Há uma porção de palavras para escolher ao descrever Erykah Badu – sua bio no Instagram nesse momento (em novembrod e 2020) é “THE UNICORN- 17 YEARS AHEAD…Experimental Film Maker”, por exemplo. Entre essas e as já familiares artista, cantora, compositora, produtora, atriz, e doula, um termo que faz jus a seu ofício musical é: alquimista. Badu é uma alquimista. De seu laboratório interno surgem fusões mágicas que combinam elementos de soul, rap, jazz, funk de forma singular, sensível, precisa. E New Amerykah Part One (4th World War) (2008) representa o momento de sua discografia no qual todas essas energias estão calibradas com a crítica social de mais contundente de sua discografia.

O primeiro capítulo da série New Amerykah chega cinco anos após Worldwide Underground (2003), o maior hiato entre projetos de Badu até então. A demora foi resultado de um bloqueio criativo que a cantora depois identificou como “período de download– ela não estava vazia de ideias, apenas angariando material. E essa transmutação em seu processo de criação teve dois principais catalisadores: um notebook que ganhou de Natal do amigo e produtor Questlove e as subsequentes aulas, ministradas pelo filho Seven, no GarageBand. Durante o período, Badu gravou e produziu mais de 60 músicas enquanto esperava o jantar ficar pronto ou sentada no chão da sala, brincando com os três filhos.

Dessa alquimia, verteram dois discos – o segundo, lançado em 2010 –, definidos pela própria Badu como: “O primeiro [4th World War] é música para estimular o cérebro, o lado esquerdo. É um testemunho sobre as coisas que vejo ao meu redor. O segundo [The Return Of The Ankh] vai ser muito mais emocional, é a reação emotiva ao primeiro. É o resultado da batalha”. Sua capacidade de captar a realidade e a alojar sob sua própria perspectiva intuitiva e musical está na fase mais afiada, e tópicos sócio-políticos, como racismo estrutural, violência policial, religião e pobreza, perpassam o repertório. Não à toa, é um disco que transborda hip hop – além de Questlove, aparecem nomes como Madlib, 9th Wonder, Mike Chevarria, James Poyser e o grupo Sa-Ra – e ainda consegue manter o groove do funk, a sensibilidade do soul e a inventividade do jazz.

É um disco para hip hop head nenhum botar defeito, com samples incríveis, linhas de boom bap, spoken word, mas sem jamais perder o balanço. De suingue setentista, dois destaques: a faixa de abertura, “Amerykahn Promise”, cover do grupo RAMP (uma das aventuras musicais do Roy Ayers), e a faixa final “Honey”, com prelúdio blaxploitation anunciando a vinda do próximo álbum. Em “The Healer”, Badu explicita: “o hip hop é a cura” – e dedica a música ao DJ e produtor J Dilla, que morreu em 2006. Os dois eram amigos próximos, e “Telephone” também é homenagem ao célebre beatmaker de Detroit.

Em 4th World War, a sensorialidade é conduzida pela lírica. As faixas mais politicamente explícitas, como “My People”, “Twinkle” e “The Healer”, trazem elementos de repetição de sons e palavras, uso de diapasão de frequências diferentes, criando  uma atmosfera quase de cântico – reza – para as melodias. (“Twinkle”, de fato, conta com um pequeno canto em kemet antigo, um dos momentos mais bonitos do disco) Não chega a ser um disco conceitual, mas há uma certa ideia latente que aprofunda suas camadas e o solidifica enquanto projeto: a de que toda vida é sagrada e que esse entendimento é necessário para a resistência e persistência contra as subjugações do mundo.

E a alquimista Badu faz toda essa fundição de energias parecer a coisa mais fácil do mundo. A classe e a precisão com que ela mescla gêneros musicais sem criar nenhuma nota dissonante se repete e sobressai na primeira parte de New Amerykah. Badu consegue rearranjar os elementos sem ter que redefini-los. Ela não extrapola: expande e transforma. Transmutação de primeira.

(New Amerykah Pt. 1 (4th World War) em uma faixa: “The Healer”)

Loading

ARTISTA: Erykah Badu