Resenhas

Father John Misty – Pure Comedy

Compositor embarca em uma viagem desesperançosa sobre a sociedade contemporânea

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Ano: 2017
Selo: Sub Pop
# Faixas: 13
Estilos: Indie Folk, Singer-Songwriter
Duração: 74:17
Nota: 3.0
Produção: Jonathan Wilson, Joshua Tillman

Após participar de diversos projetos musicais ao longo da última década e meia — sendo sua empreitada mais conhecida de outros verões talvez o seu posto como baterista do grupo Fleet Foxes —, o músico estadunidense Joshua Tillman forjou, em 2012, sua persona Father John Misty, alcunha sarcástica sob a qual sua carreira solo pôde deslanchar.

E depois de narrar suas desventuras amorosas nos primeiros dois álbuns, Fear Fun (2012) e I Love You, Honeybear (2015), Tillman resolve apostar em uma perspectiva exterior e colocar em formato de canção sua visão de mundo, política e sociedade. Pure Comedy é uma obra marcada pelo niilismo, a afirmação categórica de que a vida não passa de uma piada de mau gosto

Em seu novo trabalho, o artista parece vir disposto a explicar essa piada. Assumindo o posto de espectador privilegiado da vida, Father John Misty narra, ao longo de uma empreitada que ultrapassa a uma hora de duração, sua versão da vida contemporânea, uma espécie de futuro distópico que parecemos finalmente ter atingido.

As canções de Pure Comedy são espertas, eloquentes e marcadas por um jorro verborrágico incessante. Assumindo o protagonismo do trabalho no cargo de Singer-Songwriter, Tillman canta com elegância acompanhado de seu violão, enquanto ressoam ao fundo acentos orquestrados de corda, pianos e coro de vozes, além de algumas intervenções atmosféricas vindas de sintetizadores. A linha evolutiva respeita o passado musical do compositor na medida em que há uma aura Folk Rock, uma inclinação romântica crooner dos anos setenta e, além destas, um apadrinhamento que parece vir de George Harrison (Total Entertainment Forever), David Gilmour (Two Wildly Different Perspectives) ou seu contemporâneo Sun Kil Moon (Leaving LA).

No entanto, o aspecto mais marcante de Pure Comedy é o tom pessimista, disfarçado de realista, com o qual o artista chama a atenção para os problemas de nossa sociedade. Ao longo do século 20 e sua perspectiva secular, erigiu-se a ideia de que inteligência tem necessariamente a ver com ceticismo. Um momento da história no qual a contestação do status quo acabou autorizando a arrogância como uma característica intelectual. Atualmente, no entanto, apontar o dedo para a narrativa catastrófica da história parece ser justamente o discurso normatizado. Pós-verdade e Donald Trump, redes sociais e narcisismo, política e entretenimento são dicotomias que transformaram o sarcasmo na realidade dominante da vez.

Nesse sentido, Tillman usa e abusa dessa alternativa. Discorre sua fábula amargurada acentuando um discurso que diz, repete e sublinha insistentemente aqueles discursos que critica, avançando sempre pela contramão. Father John Misty é uma figura que parece não admitir fragilidade em momento nenhum do trabalho; até quando ironiza o que faz é para se proteger: “Oh great, that’s just what we all need. Another white guy in 2017 who takes himself so goddamn seriously” diz em Leaving LA, como se antecipar as críticas que seu álbum inevitavelmente suscita fosse uma maneira de invalidá-las; até quando oferece um horizonte, é a contragosto: “I hate to say it, but each other is all we got” diz na faixa-título Pure Comedy, revelando que quem considera esta uma má notícia é o próprio compositor.

Anti-profeta que é, vivendo nesse jogo caótico que acontece na via negativa do mundo, para Father John Misty nada parece ter salvação. Ou, na melhor das hipóteses, o que não tem remédio, remediado está. Resta à humanidade aceitar o seu fim inevitável, ou regressar aos tempos primitivos e recomeçar.

Pure Comedy é, afinal, o reflexo simbólico de nossos tempos e, na medida em que produtos culturais são a epítome do pensamento de uma comunidade, triunfa neste papel. Nessa viagem egóica e monocórdica, entretanto, sobressaem alguns momentos inspirados. Na sua evidente destreza como compositor, por exemplo, ou nas nuances melódicas dos intervalos instrumentais. Mas o melhor momento do álbum revela, quase sem querer, como um ato falho em sua narrativa de depreciação impenetrável, uma possibilidade de redenção, disfarçada na canção Smoochie. Para o artista, é no simples gesto da esposa, que lhe oferece um pêssego, que a solução para as mazelas do mundo aflora. Father John Misty tentou disfarçar, mas em sua narrativa prolixa acabou revelando a verdade que, de inconveniente, não tem nada: o amor, amigos, é a resposta.

(Pure Comedy em uma música: Leaving LA)

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Autor:

é músico e escreve sobre arte