Esqueça tudo que você sabe sobre gospel. Eufóricos trompetes e uma percussão virtuosa acompanham uma voz brilhante, quase futurista, ao mesmo tempo aguda e macia, em 34 minutos de gospel highlife. A.O.E.I.U. (An Ordinary Exercise In Unity) (2025) é o mais recente lançamento da cantora ganesa Florence Adooni, nascida em uma comunidade Fra Fra, no norte de Gana. É, sim, um gospel, mas que guarda pouca (ou nenhuma) semelhança com o gospel brasileiro ou estadunidense. O disco vem na esteira do sucesso da sua faixa de abertura, “Mam Pe’ela Sure” (Meu Coração é Puro), lançada pela primeira vez em 2021 – foi o alcance dessa música que rendeu a Florence uma turnê mundial e um aumento expressivo de ouvintes. (Aliás, a faixa está a um sopro de alcançar um milhão de plays. Até a publicação desta resenha, “Mam Pe’ela Sure” acumula mais de 896 mil streamings no Spotify). A música, que é um canto tradicional da cultura Fra Fra, do norte de Gana, costuma ser cantada aos domingos acompanhada de palmas; já na produção de Max Weissenfeldt – baterista alemão que já colaborou com gigantes do pop, como na gravação do disco Ultraviolence (2014), de Lana Del Rey –, as palmas foram substituídas por uma cozinha highlife, gênero musical ganês que ganhou o mundo nos anos 1970, com trompete, sax, guitarra, piano elétrico, baixo, um tambor ganês parecido com atabaque chamado Kpanlogo, bateria e sintetizadores.
Gana foi o primeiro país do continente africano a conquistar sua independência, em 1957. Quando o governo britânico impediu o primeiro presidente de Gana, Kwame Nkrumah, de voltar ao seu país depois de uma viagem à China, começou a se desenrolar um período de turbulência na política interna do país. Por isso, a década de 1970 é marcada por uma forte migração ganesa para a Alemanha, que tinha leis de imigração mais flexíveis na época. Crescendo na década seguinte, Weissenfeldt, que também é fundador do selo alemão-ganês Philophon Records, entrou contato não somente com o que era o highlife, mas com o que seria o highlife nas próximas décadas – uma vez que o gênero estava se transformando a partir do contato com funk, disco e synth-pop. Era como testemunhar o casamento entre a percussão polirrítmica e boa dose de sintetizadores. Desde 2010, Max tem vivido na ponte aérea entre Alemanha e Gana.
“Desde os anos 1990, eu venho tentando – e isso foi antes da internet, então era realmente difícil conseguir as coisas – comprar discos africanos”, contou Max em entrevista ao The Berliner. “Eu buscava percussões polirritmicas originárias, de grandes corais, geralmente localizados no Oeste da África. Polirritmia é tão complexo. Não dá para entender até que você vá lá e pergunte como fazer isso. Ademais, Gana tem uma grande cultura highlife. Tem um grupo em especial chamado Dr. K. Gyasi & His Noble Kings. Eles fizeram esse disco chamado Sikyi Highlife, que eu considero um disco lindo. Um amigo me mostrou esse álbum e, no dia seguinte, eu marquei um voo para Gana. Tinha que encontrar essas pessoas. Eu estava completamente extasiado pelo som”.
Fortemente influenciada por Christy Azuma, primeira cantora Fra Fra a conquistar projeção internacional, Florence Adooni começou a cantar nos corais da igreja e lançou seu primeiro disco de forma independente em 2011, Ho Sanga La Pa’aya (Sua hora é agora). Em uma das viagens de Max a Gana, um vendedor de uma loja de discos mostrou a faixa “Da Sake” para o turista, que ficou obcecado. Na segunda vez que foi à loja, Max viu Florence do lado de fora, vendendo as cópias do seu CD na rua. Era o começo de uma colaboração de mais de uma década, que hoje culmina no lançamento de A.O.E.I.U. (An Ordinary Exercise In Unity).
Com passagem por 70 países e um programa com uma seleção de highlife na NTS, Florence Adooni caiu nas graças dos críticos e público global. Não é pra menos. A.O.E.I.U. (An Ordinary Exercise In Unity) é uma viagem sonora, das faixas groovadas de pista como “Vocalize My Luv” até a faixa-título, em que o ouvinte é levado por uma repetição vocal quase meditativa em meio a saborosas linhas de sax sob uma incansável cozinha percussiva, evocando um spiritual jazz. Todas as músicas falam sobre amor, união e paz, eixo temático do gospel. Mas, aqui, você vai encontrar essas palavras em um tempo acelerado, quase psicodélico, com melodias viciantes, como em “Otoma Da Naba” e “Uh-Ah Song”. No geral, A.O.E.I.U. apresenta um belo retrato ganês hoje, com o frescor de uma sonoridade jovial, em que trompetes e flautas brincam divertidamente com sintetizadores em uma percussão polirrítmica acelerada. Rende pista, mas também é uma boa escolha para um domingo à tarde em casa.
(A.O.E.I.U. em uma faixa “Vocalize My Luv”)