Tomorrow Comes Today, faixa presente no debute da banda Gorillaz, evoca um tema perseguido pelo grupo durante toda a sua carreira: um futuro dramático que está prestes a se abater sobre nós. Nascida no início dos anos 2000, a empreitada liderada por Damon Albarn sempre foi um projeto visionário que soube brincar com o imaginário de uma época ao forjar uma banda “virtual”. Composta por quatro integrantes que só existem no mundo dos cartuns, a imaterialidade do conjunto britânico parecia ser justamente a essência de sua música: cosmopolita, livre de amarras, capaz de qualquer coisa.
Em Humanz, seu quinto álbum completo, a expressão virtual imaginada por Albarn e pelo artista Jamie Hewlett parece ter, após um processo gradativo, se concretizado no mundo real. A banda sempre apostou em uma estética pós-apocalíptica, que mistura filmes de terror com ficção científica, catalisada pelos absurdos possíveis apenas nos desenhos animados. A chegada do novo trabalho mostra que esta narrativa, genial há 17 anos, acabou se tornando o reflexo de uma realidade atual e amarga.
A potencialidade do grupo, transcendente e imaterial, formada apenas de ícones, aos poucos foi perdendo o teor de mágica. Ao longo dos anos, Gorillaz ganhou corpos reais: a banda que antes imaginávamos ser feita de personagens fictícios, hoje sabemos que é, mesmo ainda ilustrada por desenhos animados, composta por Damon Albarn e colaboradores intermitentes. A fantasia de um jogo entre o mundo virtual e o concreto também não é mais novidade, com as redes sociais provando o quanto são reais e de fato influenciam nossas vidas. A sonoridade do grupo, que antes mais se parecia com uma massa amorfa de influências vindas do futuro também ganhou contornos muito palpáveis. Hoje a música de Gorillaz é feita dos gêneros musicais mais evidentes da mainstream: a pegada Indie do Britpop e o Rap de ares noturnos, que se confundem com a música Eletrônica dançante, são exemplos fortes da música britânica que ganhou o mundo na última década.
No entanto, o teor decisivo para a música de Humanz, dentro de todo esse cenário que Gorillaz previu, talvez seja a visão catastrófica de um planeta feito de ruínas, o fim do mundo que, após as rasteiras que a democracia vem levando ininterruptamente nos últimos anos, finalmente chegou. Esta narrativa se tornou a grande palavra de ordem na música ocidental, falando da insatisfação humana diante dos contornos políticos da sociedade contemporânea.
No início do século, imagens de medo manipularam o desejo do público. No entanto, como falar sobre tragédias após estas terem acontecido? A resposta de Gorillaz vem pela promoção de uma catarse coletiva, uma festa do fim do mundo.
Humanz é uma viagem enciclopédica de Albarn e convidados na tentativa de refletir a sociedade ansiosa e sobrecarregada em que vivemos. A música, que apesar de continuar na mesma linha de pensamento de seus antecessores – soturna, esquisita e de alma Pop – conta com essa diferença fundamental: o clima é amargo e a ausência de refrões pegajosos aqui é quase como um sintoma da fase atual do grupo.
Podemos destacar alguns momentos que ditam a lógica do álbum como um todo. Ascension, com Vince Staples, é a presença marcante do Rap ácido e eloquente. Os momentos mais introvertidos, melodiosos e melancólicos ficam a cargo de Albarn, como na faixa Busted and Blue. Em Hallelujah Money, Benjamin Clementine canta com uma melodia reprimida e soturna sobre a fantasia de liberdade em tempos de muros e constrições. We Got The Power é a epítome otimista desta trabalho, unindo até mesmo Noel Gallagher, antítese de Damon Albarn, em uma mensagem de união em favor de um futuro melhor.
Gorillaz, há mais de uma década e meia, previu o futuro, e hoje chegamos à concretização dessa imagem forjada pelo grupo. O Pop torto e o Rap noturno são justamente duas das expressões mais disseminadas na música atual; o descontentamento com políticas totalitárias do medo, manifestadas em Donald Trump ou Brexit, é a narrativa predominante da música; imagens virtuais hoje ocupam um lugar consagrado no protagonismo das inúmeras linguagens artísticas existentes. A banda parece ter chegado ao seu limite, e talvez seja esse o motivo pelo qual a banda começa a se transmutar em pessoas reais, como evocado no binômio presente no título deste trabalho: Gorillaz/Humanz. Cabe ao grupo conduzir seus fãs dentro desse cenário que vivemos, cenário que a banda conhece muito bem, como verdadeiros mestres de cerimônia, até que essa festa, enfim, acabe.
(Humanz em uma música: Saturnz Barz)