Resenhas

Grizzly Bear – Painted Ruins

Em quinto trabalho, banda cria ambiente no qual conforto e desarmonia coexistem

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Ano: 2017
Selo: RCA
# Faixas: 11
Estilos: Indie, Art Rock
Duração: 48:28
Nota: 4.5
Produção: Chris Taylor

“Um dia você estará sentado num lugar qualquer, pequeno ponto perdido no nada, para sempre, no escuro, como eu. Um dia você dirá, estou cansado, vou me sentar, e sentará. Então você dirá, tenho fome, vou me levantar e conseguir o que comer. Mas você não levantará. E você dirá, fiz mal em sentar, mas já que sentei, ficarei sentado mais um pouco, depois levanto e busco o que comer. Ficará um tempo olhando a parede, então você dirá, vou fechar os olhos, cochilar talvez, depois vou me sentir melhor, e você os fechará. E quando reabrir os olhos, não haverá mais parede. Estará rodeado pelo vazio do infinito, nem todos os mortos de todos os tempos, ainda que ressuscitassem, o preencheriam, e então você será um pedregulho perdido na estepe. Sim, um dia você saberá como é, será como eu, só que não terá ninguém, porque você não terá se apiedado de ninguém e não haverá mais ninguém de quem ter pena.”

Este é um dos excertos mais impactantes da obra do escritor irlandês Samuel Beckett, presente no livro Fim de Partida. É uma espécie de ponto central em torno do qual sua obra se expande de forma espiral. Fala do tédio, do comodismo, do cansaço, da ruína e, enfim, de como uma pessoa pode apagar-se gradativamente de sua própria vida. A peça de Beckett, embora não seja citada diretamente em momento nenhum de Painted Ruins, parece ser um bom exemplo do universo que este compartilha. O novo álbum da banda estadunidense Grizzly Bear, o quinto de sua carreira, revolve sobre o mesmo conceito, a ideia de que o conforto e a ruína coexistem.

Basta olhar para o trocadilho presente no título de uma das faixas. Mourning Sound, o “som da tristeza”, pode ser confundido com o “morning sound”, o “som da manhã”. Este é um tema recorrente no trabalho. Muitas letras falam do período em que o dia está nascendo como uma metáfora para esse estado mental. Ao acordar, ainda confortáveis na cama, o quarto está desarrumado, não sabemos direito onde estamos, ouvimos os barulhos que vêm de fora. É um sentimento contraditório: é confuso, mas é envolvente.

Esta é uma fórmula que se reflete na produção do álbum, no qual tudo é opaco. Sintetizadores distorcidos, um par de vozes muito distintas e uma guitarra afinada alguns tons abaixo do usual ajudam a criar uma atmosfera sibilina para aquele que o escuta. Só se entende o trabalho na medida em que se convive com ele. Como já dissemos anteriormente, ouvir Grizzly Bear é como decifrar um enigma. Essa fórmula é um dos pontos altos de toda a carreira da banda, e se repete por aqui. Afinal, ouvir Painted Ruins é ficar confortável na sua desorganização, encontrando a harmonia que subsiste ao caos dos arranjos instrumentais.

Four Cypresses é inspirada em um morador de rua e possui um dos versos mais evocativos do trabalho, “it’s chaos but it works”. É também nesta faixa que encontramos a máxima beckettiana “Instead of moving / You stared into the wall.” Assim como na obra do escritor, Glass Hillside exibe um senso de que a verdade habita em outro reino, para além dos limites da parede do quarto, para além das colinas da cidade. O clipe de Neighbors, por sua vez, elabora uma ideia semelhante, de pessoas que gradativamente se tornam o entorno, isolam-se de si mesmas, encobertas pelo hábito. É também uma metáfora para um relacionamento que já acabou, mas que não se movimenta, no qual duas pessoas podem acabar se tornando meros vizinhos.

Pintar uma ruína é reformá-la apenas para que permaneça como está. É um paradoxo: a ideia de que é possível fazer a manutenção de algo que se degrada. Painted Ruins habita um momento de transição, o crepúsculo azul-escuro do dia que ainda não nasceu, a mudança para uma consciência que ainda não despertou, a inspiração de um fôlego que se toma para sair de desconforto ao qual nos habituamos.

(Painted Ruin em uma música: Mourning Sound)

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BOM PARA QUEM OUVE: Alt-J, Dirty Projectors, Radiohead
ARTISTA: Grizzly Bear
MARCADORES: Art Rock, Indie, Ouça

Autor:

é músico e escreve sobre arte