Resenhas

IKOQWE – The Beginning, the Medium, the End

Com produção experimental e rimas afiadas, disco do duo angolano utiliza a metáfora clássica do afrofuturismo para refletir o mundo contemporâneo

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Ano: 2021
Selo: Crammed Discs
# Faixas: 11
Estilos: Hip Hop, Afropop, Experimental
Duração: 32'
Produção: Batida, Celeste Mariposa, Octa Push e Spoek Mathambo

Com premissa afrofuturista, rimas que soam como nosso Rap carioca e uma produção experimental — este disco de Angola tem muito a dizer sobre o mundo. O tamanho é ideal: são 11 faixas que pedem pouco mais de meia hora de audição. Começa misterioso, mas também assertivo: o duo angolano IKOQWE se apresenta como dois seres de outro tempo e espaço que vieram ao planeta Terra e aqui expressam suas impressões sobre este estranho mundo. Embora o retrato pintado pelos artistas angolanos seja difícil de encarar, é quase impossível parar de ouvir. O disco de estreia de IKOQWE é igualmente combativo e fascinante.

The Beginning, the Medium, the End and the Infinite é uma fusão de linguagens. Primeiro, o disco é cantado em português, inglês e em gírias angolanas. E segundo, há uma equação entre música eletrônica experimental, boom baps e samples da pesquisa de etnomusicologia de Hugh Tracey durante a década de 1950. Tematicamente, o duo não se distrai de seu propósito inicial: utilizar a metáfora clássica do afrofuturismo — mito da Nave Mãe que viria resgatar sujeitos, sujeitas e sujeites da diáspora africana e levar todes de volta ao planeta de origem, longe das mazelas do colonialismo — para refletir o mundo contemporâneo.

Na lírica, até a tragédia brasileira ganha menção honrosa. “O mundo tá inclinado, ‘tá fodido em todo o lado/ Aqui bongó faz estrago, alí juiz é desajuizado”, dispara Ikonoklasta (Luaty Beirão) na envolvente “Vai de C@n@!”, “Tem Orban, tem Bolsonaro, Erdogan/ Tem Netanyahu, Tem Trump desmiolado/ Quem não chegou lá vai chegando/ E nós? pausados/ Apreciando o cenário/ Esperando nunca ser jamaicano/ Nunca ser tramancado/ Nunca ser violentados pelos uniformizados/ Que deviam tranquilizar-nos/ Nunca ser alvo d’um Estado mal intencionado/ E aguardando que os putos fiquem altos e nos mandem pro caralho!”. Ainda no final da faixa, uma voz com tom de radialista afirma: “E, assim, viemos, semeamos e vamos levantar nosso voo de volta para o nosso planeta. Porque não encontramos neste mundo ouvidos dispostos a ouvir. (…) Viver bem, terráqueos!”

Esta mesma voz retorna na quinta faixa do disco, chamada “The Medium (O Meio)”: um interlúdio falado em inglês envolvido por um beat com percussão marcada e fortes intervenções eletrônicas. “In the 1960’s, way before anybody had ever tweeted, Facebook Live’d or sent classified information for WikiLeaks/ One man made a series of pronouncements about the changing media landscape/ His name was Marshall McLuhan/ And you’ve probably heard his most quoted line/ “The Medium is the message”/ McLuhan theories were ground breaking in the 60’s/ But if you read them today, they would seem prophetic”, apresenta Ikonoklasta. Em um desfecho filosófico, a música que marca o meio do disco ainda diz: “Everything happens at once/ There is no continuity, there is no connection/ There is no follow through/ It’s just all now.”

Curiosamente, os personagens desenvolvidos para IKOQWE não se restringem às ilustrações do estúdio de design londrino Allthepie. Iko (Luaty Beirão, ativista político e rapper conhecido como Ikonoklasta) e Coqwe (Pedro Coquenão, produtor musical conhecido como Batida) só topam se apresentar ou falar com a imprensa dentro desta performance. Em entrevista ao KEXP, pouco antes da apresentação do álbum visual desenvolvido para a rádio estadunidense, o duo foi questionado sobre o motivo de usarem as antenas improvisadas e as faixas de gaze cobrindo o rosto e o corpo. A resposta foi que na descida para Terra, a nave veio em uma angulação errada, o que provocou muitas queimaduras — ou, para preservar o trocadilho, o planeta já teria causado muitos burnouts.

Para entender a relevância social e política de IKOQWE, é fundamental ter uma noção de quem é Luaty Beirão (o rapper Ikonoklasta) e Pedro Coquenão (o produtor musical Batida). Luaty Beirão já era um importante rapper quando dirigiu seu ativismo político também para a desobediência civil; um caso emblemático foi quando foi preso em 2015 durante um encontro com outros ativistas que promoviam leituras em grupo do livro Ferramentas para Destruir o Ditador e Evitar Nova Ditadura — Filosofia Política da Libertação para Angola, do jornalista Domingos Cruz, uma adaptação do livro Da Ditadura à Democracia, de Gene Sharp, ao caso angolano. À época, Beirão estava no meio de uma greve de fome que chegou a durar 36 dias.

No disco, Ikonoklasta tem algumas rimas que podem ser referências diretas ao episódio, como na faixa “Outra Cidade (Another Town)”, na qual diz que na certa preferia “voltar no tempo e não ter lido aquele livro que deu sentido à rebeldia”. No entanto, dispara em sequência: “Cada dia, uma escolha/ Cada escolha, uma azia” e reafirma sua posição combativa.

Em entrevista à Gerador, Pedro Coquenão responde sobre a reincidência no disco de críticas ao neocolonialismo e história falsificada (ou história única): “Seguindo a ideia de deixarmos tudo um pouco melhor do que encontrámos, nada podemos fazer contra factos, mas podemos pensar em lê-los melhor, relatá-los melhor, ensiná-los mais próximo da realidade e do presente em que vivemos para que, naturalmente, as gerações futuras cresçam num lugar mais próximo de uma justiça social verdadeira, mais igual”, reflete. “Gabo a sorte de quem consegue viver dissociado de tudo ou apenas focado no seu umbigo”, arremata.

Esta não é a primeira colaboração entre Batida e Ikonoklasta, que já trabalham juntos desde o início dos anos 2010. A crítica social e política sempre esteve presente e afiada. Vale conferir “Cuka” e “Tirei o Chapéu”, participações de Ikonoklasta no disco Batida (2012), e também todo o disco Dois (2014), que conta igualmente com duas participações de Ikonoklasta, em “Fica Atento!” e “Lá Vai Maria”. Quem mergulhar nessa viagem a Angola, certamente vai reparar que sonoramente IKOQWE traz um perfil mais lapidado, o qual compele à ação. The Beginning… inspira a se mexer, com uma rota muito bem traçada na métrica das rimas de Ikonoklasta. É um disco de ouvir enquanto acende o coquetel molotov.

“Em Angola existem várias Angolas”, continua Pedro Coquenão (Batida) na entrevista à Gerador, “O país foi agregado e mapeado por conveniência e violência Colonial. Esta Angola atual continua a ter muitas coisas únicas como muitos territórios no mundo inteiro. O desafio é celebrar essa unicidade por oposição ao efeito esfoliante da globalização, começando no período colonial até ao momento em que estamos, passando pelas décadas de guerra e governação criminosa. Simplificando: Angola tem instrumentos únicos, histórias únicas, uma melancolia menos esperada na idealizada música Africana e tem, acima de tudo, muitas pessoas talentosas com coisas únicas para partilhar.  A melhor forma de contribuir para a tradição é renovando-a.”

(The Beginning, the Medium, the End and the Infinite em uma faixa “Vai de C@n@!”)

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ARTISTA: IKOQWE