Ouço este novo álbum da cantora e compositora californiana e enfrento um dilema. Como não dar cotação máxima a ele? Sabemos que as cinco disputadíssimas bananas que mostram o quanto um disco é absolutamente perfeito, inovador, plural, entre outros adjetivos, não surgem facilmente por aqui. É preciso exercitar o ceticismo, pensar que, não, nesses tempos cruéis de hoje, com tanta coisa estranha surgindo por aí, uma menina com um violão vai conseguir tal proeza? E logo no segundo trabalho? Precisa amadurecer, precisa…Será? A sensação que tenho ao ouvir essas nove canções é de que Jessica Pratt é minha vizinha, minha ex-colega de faculdade, talvez minha ex-paixão platônica. Admita, a gente não sente isso todo os dias, com todas as músicas que ouvimos. Não se trata de sexo, de bundas mexendo aqui e ali, é algo bem maior e mais, digamos, importante. Ela pode, de alguma forma, se conectar afetivamente com o ouvinte e, sem que percebamos, numa noção que borra o tempo transcorrido, ser nossa camarada de glórias e tradições. Vamos ver se ela merece mesmo essas cinco bananas.
O registro vocal da moça é da mesma escola de gente como Joni Mitchell, só que é mais agudo e juvenil. Ainda não traz a carga de experiências que a canadense imprimia em suas melodias e letras, mas mostra que a inspiração das duas pode ter interseções importantes. Se Mitchell cresceu num Canadá pré-Rock e migrou logo para os Estados Unidos, se constituindo numa testemunha ocular dos anos 1960 e sua carga transformadora, Pratt se vale de um olhar crítico sobre o cotidiano e essa rapidez estéril com a qual ele parece ser mover, mesmo que aparente estar no mesmo lugar há tempo demais, algo que pode ser, digamos, sentido em suas canções. É o olhar de quem está numa pequena varanda de um prédio de vários apartamentos por andar, olhando para a rua lá embaixo e imaginando os caminhos que os carros, ônibus e passantes fizeram até ali. É contemplação, percepção, tudo com a sutileza do ar em movimento, de uma brisa que mexe no cabelo ou encontra a face. A foto da capa do álbum traz a moça em frente a uma janela, de costas para a paisagem que mostra alguns prédios lá fora, de alguma forma, afirmando essa impressão. É tudo, de fato, sem truques, muito leve e singelo. A Vogue americana cravou que este é o “álbum perfeito para o inverno”. Pode ser.
As canções trazem apenas a voz e o violão de Jessica. Algumas têm vozes multiplicadas, alguns efeitos mínimos de teclado ou piano e, ao longe, às vezes, um pedaço de céu aparece. Em seu álbum homônimo de estreia, a abordagem era apenas voz/violão. A abertura luminosa com Wrong Hand já tem início com a paisagem de alguém acenando em meio a um vai e vem de gente em algum lugar do campo de visão. Em meio ao todo, violões amplos e gentis conduzem a melodia com a aparição discretíssima de um melotron. O ritmo de Game That I Play é muito mais, digamos, elementar e arejado, com vocais dobrados e sussurrados aqui e ali, pesando o mesmo que uma pluma e trazendo imagens praianas numa tarde sem sol. Logo em seguida vem Strange Melody e seu andamento mais dinâmico e cheio de pequenas surpresas vocais e sobreposições, além da curiosa alusão a um trecho de Hungry Like The Wolf, canção de 1983 de Duran Duran. Os dois minutos e meio de Graycedes passam rápido como um passeio sob a chuva, em meio a pequenos efeitos de teclado lá e cá.
Moon Dude retoma a languidez das levadas, com o registro vocal de Jessica soando um pouco mais sofrido dessa vez, imprimindo uma dinâmica que poderia lembrar algum lado B de Nick Drake. Jacquelyn In The Background é outro exemplo de conto cotidiano, com algumas sutis interjeições do violão, dedilhados e pequenas marcações que temperam a ingenuidade da canção com a sensação de que Pratt sabe exatamente o que está fazendo em termos de colocar seu talento natural plenamente a seu favor. Vozes duplicadas abrem a belíssima I Got A Feeling, dinâmica e brejeira, que conduz o ouvinte à clássica canção Pop dourada que é Back, Baby, disfarçada num arranjo que dá coerência ao álbum ao mesmo tempo em que revela a beleza da melodia e a fragilidade dos vocais de Pratt. A faixa título chega no fim do álbum, frágil, pungente e triste, com mais potencial para hit dourado em forma de balada nas mãos de algum produtor laureado do passado, talvez o próprio Phil Spector.
Ao fim das contas, das nove canções e de toda a impressão de conhecer Jessica Pratt há tempos, imagino qual o potencial deste disco. Não vai tocar nas paradas de sucesso, não aparecerá em comerciais ou filmes de grande bilheteria. No máximo, com sorte, em alguma série descoladíssima ou num longa independente com bom desempenho no Festival de Cinema de Sundance e terá sido justo, uma vez que o plano de Jessica Pratt é o privado, suas canções são pequenas conversas ou divagações que temos no sofá da sala, na poltrona do quarto, na varanda de casa. É música para um ouvinte de cada vez e isso parece intencional. Vai para o trono.
Jessica Pratt – Back, Baby