Resenhas

Just Mustard – Heart Under

Segundo disco da banda irlandesa mantém fusão entre shoegaze e post-punk, com canções, ao mesmo tempo, catárticas e precisas

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Ano: 2022
Selo: Partisan Records
# Faixas: 10
Estilos: Post Punk, Shoegaze, Noise
Duração: 45'
Produção: Just Mustard

Uma das qualidades mais complexas que um disco pode ter é a de proporcionar catarses ao seus ouvintes. A complexidade da coisa está no fato de que uma sonoridade desse porte não se constrói apenas colocando ou removendo determinado elemento. Uma música construída de forma alta e barulhenta é apenas emoção sem forma, enquanto uma composição que vem dos cantos mais internos do compositor, mas é tímida em seus timbres e sonoridades, é apenas uma canção intimista. Percebe-se que, apesar de não haver uma fórmula precisa em relação a uma obra ser mais ou menos catártica, há elementos que devem ser considerados e planejados de forma criteriosa. Instaura-se aí um paradoxo instigante, pois, como uma catarse pode ser planejada se a sua própria natureza pressupõe uma ausência de formulação. Este é o paradoxo com o qual o grupo irlandês Just Mustard se deparou quando, em 2018, lançou seu disco de estreia Wednesday.

A partir de um caso sério de amor entre shoegaze, dream Pop e noise, a banda deixou claro nos primeiros segundos daquele trabalho que seu som não mediria esforços para extasiar o ouvinte. Com tantas referências em jogo, colocar todas elas em um disco, sem uma espécie de planejamento mínimo, seria desastroso – principalmente considerando a natureza expansiva e ecoada dos gêneros musicais citados. Esta “estratégia”, por assim dizer, talvez tenha sido um dos pontos chaves para que a banda ganhasse popularidade tão rapidamente. Certamente se trata de um som pesado, grande, intenso e qualquer outro adjetivo que caminhe neste sentido explosivo. Mas não é apenas isso. Existe um tom confessional muito particular nas letras, que ao mesmo que parecem sair das vísceras dos integrantes, só ganham sentido completo quando se alastram pelo ambiente externo. É quase uma representação da máxima da psicologia de que falar sobre um assunto sempre ajuda a elaborá-lo de forma mais clara – só que neste caso, não basta apenas falar, e, sim, gritar e procurar o máximo de barulhos possíveis para amplificar os sentimentos em um novo volume.

Quatro anos após esta marcante estreia, o grupo retorna para o fatídico teste do segundo disco e o resultado supera qualquer expectativa. A forma com a qual o grupo estuda a construção de sua sonoridade atinge um novo patamar em Heart Under. Dessa vez, os elementos parecem menos crus e mais trabalhados, como se tivessem sido pensados de forma ainda mais estratégica do que no disco de estreia. Essa mudança é perceptível na primeira audição, quando tomamos consciência de que a banda escolheu uma área cinzenta entre a melancolia e o estupor para estabelecer as fundações e diretrizes de Heart Under. Contrário ao que se imagina, as canções parecem muitas vezes transmitir não um ou outro sentimento, mas tudo simultaneamente, consolidando um passo à frente na maturidade de Just Mustard. Este passo adiante pode ser parcialmente explicado pelo “tempo extra” para finalizar o disco assim que a pandemia e o lockdown começaram. Em entrevista para Treble, os integrantes relatam que ter quase dois anos a mais para finalizar este trabalho foi de extrema importância para lapidar composições – por exemplo, canções como o single “Still” demoraram cerca de um ano para serem compostas.

Determinar quantidades precisas de elementos para se atingir este lugar catártico é algo completamente impossível. Mas quando ouvimos as canções, percebemos que é possível atingir diferentes estados de purgação a partir das diferentes combinações entre estes elementos. A faixa “23”, por exemplo, parece impactar o ouvinte não pelo volume, mas pela forma como vai sobrepondo sutilmente camada por camada para construir o impacto final. “I am You” é mais tenebrosa, com sua linha de baixo pesada à la Pixies e uma melodia tenebrosa tal qual nos filmes de terror que têm garotinhas possuídas por demônios como antagonistas. “Blue Chalk”, por sua vez, mostra que é possível arrebatar os ouvintes tanto em um volume baixo, quanto com uma imensa parede sonora. “Rivers” tem mansuetude nos arranjos, propondo um retorno à superfície e o encerramento oficial do trabalho.

Heart Under coloca os ouvintes em um lugar de imprecisão e é justamente isso que torna o trabalho contagiante. Afinal, ou a sonoridade nos chama para dentro deste imaginário catártico, ou ela nos impulsiona a decifrar o trabalho até o fim – ou ainda, uma mistura de ambos os sentimentos. Seja como for, este novo capítulo mostra uma banda capaz de traduzir em diferentes linguagens – de shoegaze e noise ao post-punk – uma variedade de sentimentos intensos. Podemos não compreender todos eles, mas a sensação é de “tudo ao mesmo tempo”.

(Heart Under em uma faixa: “I am You”)

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ARTISTA: Just Mustard

Autor:

Produtor, pesquisador musical e entusiasta de um bom lounge chique