Resenhas

Kamasi Washington – Heaven And Earth

Saxofonista e produtor lança disco histórico para o Jazz de hoje

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Ano: 2018
Selo: Young Turks
# Faixas: 21
Estilos: Jazz, Funk, Afrobeat
Duração: 183:09
Nota: 5.0
Produção: Kamasi Washington

Uma das grandes mágicas da música enquanto arte é sua capacidade de representar a sociedade que a produz. Tal mecanismo exige uma constante mutação estética e de conceitos, que talvez seja a mola-mestra da coisa toda. Muda a sociedade, muda a música que é produzida e tal fato ocorre sem que seja necessário algum esforço. Não é premeditado, é praticamente inevitável. Esta circunstância é latente na chamada música popular (que é o contrário da erudita), que segue mudando, criando novos estilos e refletindo o mundo da forma mais pura e incontestável. Vejamos o Jazz, por exemplo, estilo que surgiu como uma essencial/intencional resposta leiga à música europeia erudita, privilégio de poucos. Sempre foi uma força motriz em termos de revolução e criatividade, dando espaço para marginais sociais ao longo dos tempos. Pecou por hermetismos quando privilegiou somente a experimentação, não acompanhou o Rock quando este surgiu, quase desapareceu e precisou se reinventar, pegando, justamente, conceitos e ideias deste. Depois se fundiu com o Funk, com o Soul, com o Hip Hop. E agora, pelas maõs de Kamasi Washington, atinge um novo patamar em sua forma.

Não é exagero afirmar isso. Os lançamentos anteriores do homem, The Epic (2015) e o EP Harmony Of Difference (2017), insinuavam tal fato, que foi corroborado com a chegada deste acachapante Heaven And Earth, um disco duplo com um CD-bônus oculto, que acrescenta mais cerca de 40 minutos ao impressionante desfile de cerca de duas horas e meia de música exuberante, plural, inegável e irresistível. Falo que Kamasi levou o Jazz um passo à frente de sua última mutação – que ocorreu nos 1990 com o amálgama com o Hip Hop – porque sua música é capaz de abraçar as ideias tradicionais do estilo (improviso, liberdade, criatividade, dualidade entre solos e ritmos) com uma impressionante vocação para incorporar outros estilos musicais adjacentes (ritmos caribenhos, Funk, Clássico, Pop), preservando uma aura essencialmene jazzística, porém muito mais acessível e capaz de oferecer atrativos para ouvintes desses outros estilos. Resumindo: Kamasi chegou a uma espécie de Jazz que te abraça, te convida pra passear, cozinha e te serve uma boa refeição para a alma. E você nem havia pedido nada disso pra ele, é uma música totalmente receptiva e acolhedora.

Nem por isso, o que Kamasi produz é “fácil”. Ela naturalmente é capaz de elevar a percepção do ouvinte que, em troca, só precisa comprometer-se em dar atenção necessária para uma audição mais dedicada. Uma vez firmado este pacto, o resultado é sempre impressionante. Kamasi também é generoso, seus discos são triplos, duplos, cheios de faixas enormes, sem pressa para acabar, nas quais o conceito de Afrofuturismo está por toda parte, como se alguém, finalmente, surgisse com capacidade/habilidade para oferecer uma síntese da música produzida pelos africanos e suas ramificações planetárias, em toda a sua suntuosidade. Não é pouco, amigos. Para demonstrar tal poder de síntese estética, Washington resolvou dividir seu disco em dois conceitos: o lado Heaven traz a ideia que o saxofonista/produtor tem do mundo através de sua percepção interior e o lado Earth é a percepção, digamos, convencional. Sim, tem uma lenga-lenga espiritualizada permeando a coisa toda, com a imagem de Kamasi surgindo na capa do álbum, em alguma paisagem bíblica/atemporal, como se fosse o próprio habitante deste mundo afrofuturista personificado.

Fiel ao preceito tradicional do Jazz, o disco traz composições próprias e versões. Nelas a criatividade do músico parte para lugares inesperados, desde um tema para filme de Bruce Lee, safra 1972, intitulado Fists Of Fury (o original é Fist, no singular, e foi traduzido no Brasil como A Fúria do Dragão), chegando a homenagens a mestres do estilo, como Freddie Hubbard, que tem sua brilhante Hub-Tones completamente arremessada para todos os cantos do espectro sonoro, ressurgindo como um híbrido Afrobeat/Funk capaz de rachar o assoalho mais resistente. Estas, presentes no “lado Earth”, são mais expansivas e vibrantes, o que não ofusca as impressionantes The Space Travelers Lullaby (do próprio Kamasi) ou a igualmente autoral e singela Vi Lua, Vi Sol, a releitura para The Psalmnist, o funk com sobrepeso de Street Fighting Mas (que chega a lembrar harmonias de Earth Wind And Fire e Kool And The Gang em seus arranjo base) e a calma aparente de Song For The Fallen, que sai da brandura pianística para um apocalipse controlado de pianos, teclados e sopros indomáveis. Além do disco duplo, o terceiro CD ainda reserva cinco faixas, sendo duas covers impressionantes de Will You Love Me Tomorrow, de Carole King, e Ooh, Child, de Stan Vincent, famosa pelas versões pop-funk de grupos setentistas como The Five Stairsteps, que ganhou sobrevida por entrar na trilha sonora de Guardiões da Galáxia. Entre as faixas autorais, a comovente My Family é um destaque.

Qualquer elogio que for feito a este álbum não será capaz de capturar sua excelência, uma vez que ele parece ser totalmente atemporal. Provavelmente no futuro, quando alguém juntar “Jazz” e “século 21” em algum mecanismo de busca mental, o nome de Kamasi Washington e de seus discos, especialmente este, serão a primeira opção oferecida. Um lançamento superlativo, que quebra barreiras e do qual é difícil escapar.

(Heaven And Earth em uma música: The Space Travelers Lullaby)

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BOM PARA QUEM OUVE: Robert Glasper, Thundercat, Miles Davis
MARCADORES: Afrobeat, Funk, Jazz, Ouça

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.