Resenhas

Kate Bush – The Sensual World

Influenciada por James Joyce e pela onda “World Music”, Kate Bush cria um universo coeso e maduro, enquanto o colore com sofisticação pop

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Ano: 1989
Selo: EMI / Columbia
# Faixas: 11
Estilos: Pop, Art Rock, Art Pop
Duração: 46'
Produção: Kate Bush

The Sensual World (1989) é o sexto disco de Kate Bush e saiu quatro anos após Hounds of Love (1985) – obviamente, é fácil cair na tentação de comparar esse trabalho com o anterior, mas a recomendação é: não o faça. Hounds of Love é classificado por muitos como o melhor disco de Kate Bush e é um dos trabalhos mais importantes da música pop nos últimos 40 anos, então a concorrência é bem desleal. The Sensual World não é Hounds of Love e isso não é ruim.

Kate Bush é uma artista inquieta, os universos pelos quais ela caminha sempre soam inexplorados e não é diferente em The Sensual World. Isso pode ser bem exemplificado pela história que acompanha sua faixa-título. A canção inicialmente foi construída usando trechos do monólogo final de Molly Bloom, a esposa do protagonista do romance Ulysses, de James Joyce. Para muitos críticos literários, esse capítulo derradeiro é o ponto alto da escrita de Joyce e aquele que melhor representa suas técnicas.

Ulysses é o tipo de livro considerado “difícil”, que entra naquelas listas de “livros que ninguém terminou de ler”, como Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, ou 2666, de Roberto Bolaño. Kate Bush musicou o texto de Joyce e tentou repetidas vezes conseguir a autorização dos responsáveis pelos direitos do autor, sem sucesso – ela só conseguiria essa liberação em 2011, 22 anos depois do lançamento. Com essas negativas, Kate reescreveu a canção, partindo das intenções de Molly e buscando outros caminhos nesse espaço de autoconhecimento da personagem.

De certo modo, essa guinada em “The Sensual World”, a canção, representa bastante do tom do disco, que se mostra mais fincado na realidade do que seus predecessores, uma vez que Bush sempre se jogou em universos mágicos, surrealistas ou foi dada às paixões ardentes da juventude. Há um tom de amadurecimento nas composições de Kate – aqui, amadurecimento aparece apenas em sentido de oposição àquela urgência da juventude. Kate estava chegando na casa dos 30 anos, retorno de Saturno e todas essas questões.

Claro, Kate Bush segue falando dos seus amores e de suas paixões, mas há outros tons e outras camadas, tudo com um olhar muito único. A faixa “Deeper Understanding”, por exemplo, é sobre um homem que se “apaixona” pelo seu computador e encontra nele seu auxílio – alguém pensou no filme Her? A faixa ganhou um clipe em 2011, quando do relançamento do disco, em uma nova versão e parecia ainda mais atual.

A sensação é sempre a de que Kate está muitos e muitos anos à frente das coisas. E isso se reflete também nas construções sonoras de The Sensual World, pois aqui ela transforma sua grandiosidade em delicadeza. Cada faixa tem camadas e camadas, nas quais cada pequeno som se mostra um novo universo que Bush experimentou.

Um detalhe particularmente interessante é que nos anos 1980 estava muito em voga a tag “World Music” e os artistas gostavam de experimentar essas sonoridades de diferentes países – vide os discos de Paul Simon. Em The Sensual World, Kate Bush flerta com diferentes sons. Há suas experimentações usuais, seus passeios pela música celta irlandesa, seus encontros com sons do sul da Ásia e a interessante participação do Trio Bulgarka em três faixas do álbum. O trio vocal húngaro foi um dos primeiros grandes sucessos mundiais da tal World Music.

Kate Bush, no final das contas, carrega aqui um olhar para a World Music que remete – de uma maneira mais pop – às experimentações do Dead Can Dance: há essas diferentes sonoridades, mas tudo serve para uma construção própria da artista. Por exemplo, ela coloca as vozes do Trio Bulgarka para bater de frente com a guitarra de David Gilmour em “Rocket’s Tail”, faixa que grita Pink Floyd de forma interessantíssima. Aliás, vale lembrar aqui que Kate e David são amigos e colaboradores recorrentes, já que ele espalhou as primeiras demos da então novata cantora durante a década de 1970.

Enfim, Kate sempre é o futuro, mas ainda assim ela não deixa de ser uma figura de seu tempo, nesse caso, os anos 1980. Dois exemplos básicos: em seu lançamento em vinil, The Sensual World acaba na faixa “This Woman’s Work”, porém a gravadora estava investindo no lançamento dos álbuns em CD, aí a faixa “Walk Straight Down The Middle” foi lançada como extra da nova mídia. Já a faixa “This Woman’s Work” foi, originalmente, escrita para o filme Ela Vai Ter Um Bebê (1988), de John Hughes – e nada representa mais a cultura pop dos anos 1980 do que John Hughes.

The Sensual World acaba sendo um álbum que tateia, de certo modo, as experimentações futuras de Kate Bush e que, passados tantos anos, segue ainda muito moderno e cativante. Comparado aos outros petardos de Bush, pode até passar despercebido. Mas não se deixe enganar: é um álbum poderoso e belo.

(The Sensual World em uma faixa: “This Woman’s Work”)

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ARTISTA: Kate Bush

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