Resenhas

Kim Gordon – No Home Record

Primeiro álbum solo da ex-Sonic Youth não está preso a sua história, mas dialoga com ela para manter o status de Gordon em sua arte

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Ano: 2019
Selo: Matador
# Faixas: 9
Estilos: Experimental, Noise, Eletrônica
Duração: 39'
Nota: 4
Produção: Kim Gordon, Justin Raisen

Sonic Youth sempre foi uma banda de vanguarda. Não apenas porque a atitude do grupo sempre denotou um adiantamento artístico, disruptivo e à frente do seu tempo, mas pela própria relação de seus membros com o universo das artes. O ambiente intelectual das galerias e as performances promovidas pelas vernissages estão na mitologia e na formação individual dos integrantes. Consequentemente, tal modo de ver o mundo foi fundamental para o imaginário do conjunto que formaram. 

Agora, encerradas as atividades de Sonic Youth, Kim Gordon repensa o seu próprio caminho, mas ainda incorpora a manifestação de uma força magistral. No Home Record é o seu primeiro álbum solo após 38 anos de trajetória musical. Hoje em dia, também resoluta em sua carreira de artista visual, ela é uma das únicas investidas musicais da contemporaneidade capazes de ocuparem um lugar no Museu do Louvre. Mais do que uma potência artística, Gordon se tornou um exemplo vivo de como o ato de performar é indissociável do de fazer música.

No Home Record é um álbum feito para tocar em volume alto. A gravidade dos timbres os une em uma coisa só: violoncelo, pianos elétricos com overdrive, guitarras atonais, sua característica voz rouca e sussurrada, soam como se estivessem compactados por uma prensa industrial. Não há muito espaço para a linearidade ao longo das faixas. Gordon declama sentenças soltas, suscita imagens e espera que o ouvinte faça as próprias associações semânticas. Depois que o disco acaba repentinamente, deixa a impressão de ser uma autobiografia ditada em verbos, na qual ações se confundem com palavras de ordem de um protesto.

Nesse sentido, No Home Record é fiel à história de Kim Gordon ao passo que não se deixa estacionar no passado ao buscar novas formas de expressão que melhor correspondem ao que a artista tem a dizer atualmente. A produção, feita em parceria com Justin Raisen, soa incrivelmente contemporânea. Death Grips, Arca e Yves Tumor são algumas comparações que ajudam a colocar esse disco na linha de frente da música Experimental. No entanto, mais do simplesmente emular esse tipo de som, Gordon incorpora sua lógica às suas guitarras, sua melancolia e à poesia concreta de suas letras. 

No Home Record é um álbum urbano porque, em seu caos sonoro, suscita um ambiente de asfalto e britadeiras. Todavia, a complexidade de seu som exige também outras formas de associação, como se Gordon trouxesse à discussão tópicos como arquitetura pós-moderna e esculturas monumentais – como aquelas de Richard Serra, que parecem alterar o campo gravitacional do ambiente em que se encontram colocados. Ou seja, o disco evoca uma espécie de sobrecarregamento: a realidade “hiper” de nossos dias, na qual as cidades, a informação e a tecnologia são excessivos, carregando consigo o peso da própria saturação.

Talvez “Air BnB” – música que faz lembrar, não por acaso, uma longínqua “Plastic Sun” – seja a faixa mais emblemática por aqui. No Home Record parece aludir à falta de um lar para Kim Gordon, um novo momento de reencontro para a artista sem a banda que a definiu por tantos anos. No entanto, ele aponta também de um sintoma maior, um momento de transição mundial, no qual a precarização da vida é consequência da crise do capitalismo. Já venho dizendo há algum tempo que é música Eletrônica assumiu o papel de profeta do fim do mundo, a linguagem capaz de nos avisar, através do som, que as estruturas da sociedade estão em colapso. Em No Home Record, Kim Gordon mistura síncope e sutilezas, a ternura de sua autobiografia com o cenário desolado do mundo.

(No Home Record em uma música: “Air BnB”)

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Autor:

é músico e escreve sobre arte