Resenhas

Laetitia Sadier – Something Shines

Terceiro álbum solo da vocalista de Stereolab alia discurso marxista e Pop atemporal

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Ano: 2014
Selo: Drag City
# Faixas: 10
Estilos: Rock Alternativo, Eletrônico, Rock Experimental
Duração: 45:10min
Nota: 3.5
Produção: Emma Mario

Em algum lugar de 1994, a programação noturna da MTV Brasil exibiu um clipe chamado Ping Pong. Os responsáveis pela música atendiam pelo simpático nome de Stereolab e exibiam um visual meio “futuro do pretérito”, ou seja, calcado naquelas visões românticas, típicas da década de 1950, sobre o que seria o ano 2000, ou o século 21. A sonoridade oscilava entre experimentos sessentistas nos terrenos do Pop à la Burt Bacharach e pequenos flertes com a Bossa Nova sob uma lua cheia no verão marciano. A letra em francês ainda conferia uma dose extra de charme à coisa toda e, após algum tempo de pesquisa, cheguei a ouvir novamente a canção, presente num álbum chamado Mars Audiac Quartet. A letra, composta pela vocalista, uma certa Laetitia Sadier, trazia uma série de apontamentos sobre os ciclos econômicos do século 20, dizendo que a produção aumenta, a guerra vem, os preços sobem, a paz chega, tudo volta ao normal para o ciclo recomeçar. Pasmo e fascinado, acompanho a carreira da banda desde então e ela raramente decepciona. Laetitia também é uma alma criativa e inquieta. Tem vários projetos paralelos, participações especiais e uma carreira solo que chega agora ao terceiro álbum.

Em sua produção extra-Stereolab, Laetitia nunca repetiu a sonoridade de sua banda principal, mas jamais abriu mão de experimentar e dar asas à imaginação. Neste novo álbum solo, Something Shines, ela se vale de um conceito principal: as classes mais empobrecidas do mundo não contam com a simpatia dos mais abonados, que, segundo ela, não têm qualquer interesse em dividir sua riqueza com elas. O resultado é um mundo desigual e que precisa manter os mais pobres sob uma espécie de controle social. Usando como inspiração o livro A Sociedade do Espetáculo, do autor francês Guy Debord, que também conferiu contorno às manifestações culturais de maio de 1968 na França (e no mundo), Sadier constrói uma obra intrigante e jamais entediante ou que abra mão da musicalidade em nome de um discurso. Pelo contrário, há um equilíbrio elegante por todo o disco, que se permite tangenciar uma sonoridade próxima da abordagem retrô de Stereolab, mas que sai pela tangente em meio a um painel muito mais distópico do que parece.

Usando seu timbre passional, Laetitia usa e abusa de sua voz como tradutora das emoções (ou da falta intencional de) ao longo do disco. Canções como Quantum Soup, por exemplo, logo na abertura do álbum, servem como um panorama psicodélico de uma realidade paralela que ela propõe, mas que se confunde com o que lemos nos jornais, num movimento que confere autenticidade e estofo histórico à narrativa. O invólucro sonoro é impressionante e esparso, numa educada profusão de guitarras e teclados perpassados pela voz intencionalmente monótona. Guitarras em progressão com teclados e instrumentos de sopro dão a partida em Then I Will Love You Again, com uma inequívoca pegada Pop e arranjo crocante. The Milk Of Tenderness entrega a semelhança com a abordagem intencionalmente datada em meio a uma narrativa entristecida. The Scene Of The Lie também é deliciosamente perdida no tempo, enquanto Release From The Centre Of The Heart é o máximo que Laetitia consegue chegar da Soul Music setentista, talvez sem querer.

Butter Side Up é outra canção esparsa, com arranjo de teclados lembrando cordas e guitarras monótonas em meio a uma paisagem desolada, abrindo caminho para as considerações sociais de Transhumance e os vocais derramados de Echo Port. As duas canções finais, Oscuridad e Life Is Winning afirmam as conotações marxistas do discurso de Laetitia, investigando a luta de classes e passeando com relativa desenvoltura por este terreno tão movediço, que é a análise da distribuição da riqueza no mundo. Ao fim das contas, Something Shines é uma audição simpática e diferente de tudo o que vemos na música Pop atual. Apesar do conteúdo lírico ser mais hermético, o disco jamais é chato ou pretensioso. Conheça.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.