Resenhas

Laurie Anderson – Big Science

O primeiro disco de Laurie Anderson escancara a enorme pretensão da artista: destruir todas as estruturas que mantém de pé a sociedade como conhecemos e desestabilizar a racionalidade ocidental

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Ano: 1982
Selo: Warner Bros.
# Faixas: 9
Estilos: Avant-garde, Art Pop, Eletrônico, Minimal
Duração: 38’
Nota: 5
Produção: Laurie Anderson, Roma Baran

Se você for até o Pitchfork vai conseguir encontrar uma resenha da reedição desse disco que foi lançada em 2007. No texto, o jornalista Joshua Klein começa a conversa por um clichê (nada contra, eu inclusivo concordo com ele, mas, de toda forma, um clichê): “o disco continua contemporâneo”, é o argumento que ele tenta provar descrevendo um show ao qual teve a oportunidade de ir para assistir a norte-americana multitalentos Laurie Anderson. É claro que a preocupação de um resenhista frente a uma reedição é, sim, a de checar se o álbum em questão “envelheceu bem”. Sem dúvida, Big Science entra nessa categoria. No entanto, vale o questionamento: o debut de Anderson na música não seria, na verdade, um clássico?

Digo isso porque não tenho nenhuma dúvida de que em 2032 (quando o lançamento oficial do LP completará 50 anos), ele ainda será contemporâneo. E em 2052, se a gente chegar até lá, ele ainda será contemporâneo. Seja quando for, Big Science vai continuar fazendo sentido, vai continuar ecoando. Isso acontece porque Anderson escolheu cirurgicamente quais temas abordar, quais questões desconstruir, quais argumentos fortalecer e concatenar para que, ao final da audição, seu ouvinte se encontrasse em uma posição ingrata e eternamente necessária: face a face com a sua humanidade e ciente de sua condição kafkiana frente às estruturas da sociedade capitalista ocidental.

Na faixa que abre o disco “From the Air”, ela já anuncia o que vai acontecer uma vez que você decidir embarcar nessa experiência. A letra simula – com frieza irônica – o discurso anódino de um capitão que perdeu o controle do avião que pilota. “Aqui é o seu Capitão, e nós estamos caindo / Estamos caindo juntos”. E mais, audaciosa, sobre os riffs eletrônicos que parecem ser oriundos da distorção de um vocalize macabro, Anderson vai além: “Esse é o tempo. E esse é o registro do tempo”. A pretensão de Big Science não se esconde; é declarada, mas tem estofo. O “tempo” que ela aponta aqui, muito provavelmente, não se refere somente a 1982, mas ao período em que nós, enquanto humanos, decidimos viver em sociedade. Até porque, na música que dá título ao álbum, a letra – assim como na maioria de suas canções, meio faladas, meio cantadas em uma experiência teatral – ataca a racionalidade, a nossa confiança cega na ciência. Por meio de um diálogo (vale destacar a capacidade e a flexibilidade literária da artista que transborda não só neste, mas em quase em toda a sua discografia), Anderson coloca a ciência e os avanços tecnológicos no mesmo patamar da religião. Como se somente a nossa própria fé fosse o validador máximo de ambas frentes do pensamento.

Isso posto, seguimos para “Sweaters” que parece ser uma simples canção a respeito de alguém que se desapaixona por outro alguém, à princípio. No entanto, levando em consideração o contexto em que ela se insere, a faixa soa como uma reavaliação das paixões que nos mantém vivos, que nos fazem seguir no cotidiano construído para nós pelo capitalismo. Paira por sobre todas as músicas a sensação de que nada na comunidade humana (dividida em nações, movida por dinheiro, em busca de preencher papéis pré-determinados) é verdadeiramente humano e que cabe a nós a tentativa de encontrar essa humanidade em algum lugar desconhecido. Mas, será que somos capazes? Tudo isso em meio de uma melodia confusa que mistura algo que se assemelha a uma gaita de fole e batidas sem sincronia. Na sequência “Walking and Falling” deixa mais clara esta indagação. “Você está andando, mas não percebe que, na verdade, está caindo / A cada passo, você está caindo delicadamente / E daí se segura para não cair”.

O questionamento se aprofunda quando aterrissamos em “Born, Never Asked”. No começo da música, uma indagação metafórica: “Era um cômodo espaçoso / Cheio de pessoas / Todos os tipos. / E elas chegaram ali mais ou menos ao mesmo tempo / E todas elas são livres. / E todas elas / Estão se fazendo a mesma pergunta: ‘O que está atrás daquela cortina?’”. Depois de enfrentar o tempo, as estruturas da sociedade, o pensamento, Anderson dá de frente com a contraposição da morte com a nossa liberdade. No sentido de que a potência de uma desemboca na angústia inevitável do não-saber a respeito da outra. Assim, sem palavras frente à pergunta irrespondível, ela descarrega a tortura do desconhecido em seu violino. Até que, no final da canção, ironicamente, deseja “feliz aniversário”. E é dentro dessas circunstâncias que embarcamos, então, na faixa que, possivelmente, representa o momento mais importante e incisivo da carreira da artista: “O Superman”

Antes de Big Science ser lançado, “O Superman” veio como single. De maneira absolutamente inesperada, essa poesia-manifesto anti-sistêmica, por qualquer razão, tornou-se a segunda música mais ouvida do Reino Unido em 1981. Oito minutos de um suposto diálogo que coloca a pátria (os Estados Unidos, mais especificamente) na posição de “pai ou mãe”. E as críticas explodem para todos os lados: por um lado, o governo do país e seu autoritarismo disfarçado, sua hipocrisia crônica, sua postura paternalista. Ao mesmo tempo em que destaca também nossa incapacidade de mover-nos contra essa formatação de poder, nosso lugar de subjugados, nossa ilusão de termos domínio sobre as ações de “papai ou mamãe”… Tudo está em xeque.

“Example #22”, por sua vez, tem em seu alvo a comunicação. Aqui, misturando mensagens em alemão com a letra em inglês da música, Anderson – bem-humorada, mas repleta de sarcasmo – coloca a linguagem humana no mesmo patamar do latido dos cachorros, do coaxar dos sapos, do relinchar dos cavalos e por aí vai. Como se só emitíssemos sons. O resto, é só expectativa. Em geral, fracassadas: como se estivessemos, ao falar, esperando respostas como quem espera que uma dívida seja paga. 

E, por fim, as duas últimas para (quase literalmente) colocar fogo em tudo. Primeiro, “Let X=X” que trabalha dualidades e propõe uma destruição das coisas pelo atravessamento de seus opostos. O dia entra na noite, a fala entra na escrita e, no final, tudo queima. “It Tango” – uma clara continuação da faixa anterior – fecha o LP brilhantemente lembrando-nos que quem fez esse disco, quem apontou todas essas questões, deliberou todas essas críticas, compôs todos esses sons é uma mulher. Uma mulher que, no contexto de “It Tango” não é ouvida. Sorte a nossa que, ao contrário do idiota descrito nessa letra, somos capazes de ouvir e absorver este apocalipse resumido na figura de Laurie Anderson – uma artista preparada para dar fim ao planeta.

(Big Science em uma música: “O Superman”)

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