Resenhas

Laurie Anderson – Homeland

A artista explora o tema da pátria e, ao fazer isso em movimento circular, ela disserta a respeito do próprio funcionamento do pensamento em um exercício de recordação

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Ano: 2010
Selo: Nonesuch/Elektra Records
# Faixas: 12
Estilos: Art Pop, Experimental
Duração: 66'
Nota: 4.75
Produção: Laurie Anderson, Lou Reed, Roma Baran

Ao longo de sua carreira, Laurie Anderson elaborou e aperfeiçoou uma visão de mundo. Nela, contextos políticos da vida nos Estados Unidos dialogam com lembranças íntimas da artista, provocando analogias e intersecções que revelam, de forma poética, o espírito do nosso tempo. Mais do que uma simples fórmula de trabalho, Anderson criou, em suas cinco décadas de trajetória ‒ dividida entre performance, música, cinema e artes visuais ‒, uma linguagem própria. Ela é uma contadora de histórias: com uma voz calma, distante de nós, parece nos oferecer uma meditação guiada por meio de suas verdades invisíveis. 

Homeland, ou “pátria” em português, é um álbum lançado em 2010. Por conta de seu título, remete imediatamente a um cenário político central da vida estadunidense. No entanto, ao ouvir este trabalho percebemos que a nação à que Anderson se refere não diz respeito apenas ao Estado, mas envolve conceitos mais sutis e imediatos da vida cotidiana que nos formata. Nesse caso, a saudade do pai, a relação difícil com a mãe, questões que obviamente não são compartilhadas por todos nós, mas que são arquetípicas quando tocam na maneira como nos relacionamos uns com os outros.

O LP nasce de um grande processo de colagem, de excertos gravados ao vivo vindos de sua performances, de outras células melódicas já gravadas anteriormente, reunidas novamente em um contexto que não apenas os resgata, como também dá um novo sentido a eles. O trabalho de produção foi intenso e – de acordo com a artista “exigiu todas as suas células cerebrais” – inexorável de tal maneira que ela achou “que fosse perder a cabeça”. Durante os momentos finais de concretização de Homeland, Lou Reed, seu marido e melhor amigo, precisou intervir e ajudá-la na finalização, declarando: “eu ficaria maluco se tentasse fazer o que ela fez”.

O disco se inicia com uma paisagem desértica. A faixa “Transitory Life”, apesar de seu título, sugere algo de eterno. A letra menciona pessoas presas a seus valores estritamente relacionados ao dinheiro. Assim, ela parece nos dizer indiretamente que a vida no planeta vai além de questões mesquinhas sobre o poder. Os instrumentos de sopro, sobrepostos, formam montanhas arenosas de som, e sugerem uma espécie de movimento e transitoriedade que se repete infinitamente.

Ainda sobre uma perspectiva da crise do sistema capitalista, “Only an Expert” fala sobre o cinismo político que dita a vida cotidiana. Uma batida Techno molda uma narrativa sobre especialistas fixados demasiadamente em suas expertises, ignorando o quadro geral dos problemas da população. Essa faixa é a que mais dialoga com a arte contemporânea, e nos faz pensar sobre a pluralidade e abrangência do trabalho de Anderson. O tom sarcástico, pálido e robótico, é uma estética que foi largamente explorada em outras linguagens e se tornou um tropo da submissão tecnológica da atualidade.

Já “Another Day in America” é um colosso de onze minutos de duração. Quem a narra é Fenway Bergamot, o alter ego masculino de Laurie Anderson. É ele quem aparece na fotografia da capa do trabalho, um sujeito de sobrancelhas grossas, olhar condescendente, vestido em trajes sociais bagunçados. Apesar do seu título despretensioso, que sugere algo de convivial, a música é a epítome do que Anderson sabe fazer de melhor, pois parece reunir em um punhado de estrofes toda a mitologia do imaginário ocidental. A faixa lembra “O Superman”, seu hit de 1981, e pretende funcionar como a narrativa do gênesis do século XXI, evocando a falibilidade da ideia de progresso que trouxe a humanidade até aqui: “E então, estamos finalmente aqui, no começo de uma nova era / O início de um mundo novo em folha / E agora?”

Em uma das passagens mais bonitas de sua carreira musical, a música “The Beginning of Memory”, a artista nos conta sobre um bando de pássaros que sobrevoavam o planeta em uma época em que ainda havia apenas água sobre a superfície da Terra. Certo dia, o pai de uma cotovia morre e, sem que houvesse onde enterrá-lo, ela decide guardá-lo dentro da própria cabeça: “E esse foi o começo da memória / Porque antes disso, ninguém conseguia se lembrar de nada / Eles estavam somente constantemente voando em círculos.”

O que se nota em Homeland é um aglomerado meticuloso de elementos que se interconectam. Entre linguagens, melodias e assuntos reincidentes, afinal, o que a norte-americana parece propor é um exercício sobre a reflexão em si. No disco, a artista explora o tema da pátria e, assim, ao fazer isso em movimento circular, ela disserta a respeito do próprio funcionamento do pensamento e da memória em exercício de recordação. A narrativa de Anderson se expande através do texto, do som, do vídeo e da performance. Todos os meios, por mais variados que sejam, são correlatos na insistência dela em relação à sua abordagem, que a tornou fluente em sua própria língua e, consequentemente, uma das artistas mais icônicas de sua geração.

(Homeland em uma música: “Another Day in America”)

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MARCADORES: Art Pop, Experimental

Autor:

é músico e escreve sobre arte