Resenhas

Leonard Cohen – You Want It Darker

Cantor e compositor canadense ressurge em álbum pungente sobre a morte

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Ano: 2016
Selo: Sony
# Faixas: 9
Estilos: Rock, Folk, Singer-Songwriter
Duração: 36:07
Nota: 4.5
Produção: Adam Cohen e Patrick Leonard

Fico me perguntando o que nós, brasileiros jovens/de meia idade, entendemos exatamente sobre a obra de um sujeito como Leonard Cohen. Do alto de seus 82 anos de idade, Cohen nunca foi conhecido por ser um escritor/compositor/poeta fácil ou capaz de criar obras “alegres”, pelo contrário. Na maioria das vezes, ele se vale de uma autoridade, que parece inata, para discorrer sobre os mais violentos e crueis aspectos da alma humana. Aquelas instâncias que deveriam ter ficado nas cavernas, nas cruzes, nas fogueiras, nas perseguições que, talvez por nossa culpa, ainda nos acompanham e, de certa forma, nos definem. Cohen é um cronista dessa realidade bestial, nos dando a impressão de que é uma espécie de emissário de alguma divindade superior. Evidentemente, sua vida fora das câmeras e microfones não deve ser assim. Em algum momento ele deve ser um pai/avô, parente, amigo normal, desses com quem conversamos no telefone ou trocamos e-mails. É desta mistura de personas, do passar do tempo, da natureza humana, do terrível e incontornável destino de todos nós que Cohen trata em seus discos e escritos. You Want It Darker é seu depoimento mais recente sobre tudo isso.

E eu te pergunto: o que sabemos realmente sobre isso? Perdidos em nosso cotidiano classe média, postando fotos nas redes sociais, perseguindo nossos objetivos neoliberais na vida? Pouco importantes parecemos diante do tanto que o velho parece ter de fluência nestas grandes questões humanas. Cohen tece seus tratados para esta instância superior com a qual ele parece ter uma linha direta, usando seus recursos estéticos de sempre: uma voz cavernosa que parece a de uma divindade obscura, vocais femininos que funcionam como praticantes de alguma religião e um instrumental mínimo, mas que escapa da banalidade voz/violão, usando uma estrutura de banda, na qual guitarras, baixo e teclados cumprem uma função quase protocolar, a de fornecer alguma atenuante para as palavras do velho. Funciona.

Neste novo álbum, o que muda é o clima. Leonard parece resignado diante da morte, considerando-se pronto para esta jornada. Como dissemos, suas canções nunca foram “pra cima”, mas poucas vezes soaram tão lúgubres. É som para ouvir estando de muito bem com a vida, acompanhando as letras com atenção e procurando entender o que o homem quer dizer com tudo isso. O próprio Cohen declarou, em recente entrevista à revista New Yorker, que está “pronto para morrer”, o que nos arremessa para uma “audição viciada” do álbum. Se pensarmos a idade avançada do homem, sua recente redescoberta pela estrada e o pico de criatividade que seus trabalhos recentes têm alcançado, tal situação tem feito bem a ele.

A faixa-título, que abre o ciclo de nove canções, não economiza no arranjo espectral. Soa como um ajuste de contas com o imponderável, revestido pelo embate entre lógica e religiosidade, como dois lados de uma mesma moeda humana, com Leonard entoando as palavras: “I’m ready, my lord”, soando como uma inequívoca declaração de intenções. As composições seguintes ainda vão mais fundo nesta onda de ajuste de contas e impossibilidade diante do inevitável. Treaty é voltada para os aspectos afetuosos, para os amores que vêm e vão e nos levam com eles, com Leonard pedindo “I wish there was a treatry between your love and mine”. É triste, mas é bem bonito. On The Level chega a ter fraseado de piano lembrando Ave Maria e vozes femininas em lamentos ocasionais, numa evocação nitidamente Gospel, assim como If I Didn’t Have Your Love, enquanto um belo arranjo de bandolins e violinos abrem Traveling Light, que tem um ar de canção mediterrânea, que foi lugar de inspiração para Cohen por um bom tempo em sua vida. It Seemed The Better Way é outro inventário, ponderando sobre a relatividade do conceito de verdade, dizendo “o que era verdade ontem, não é mais verdade hoje”, projetando o disco para seu final, com a ofegante Steer Your Way e uma reprise de um arranjo com cordas sentidas para Treaty.

Cohen é desses artistas do século passado. Soa fora de lugar hoje, tem trajetória que não cabe nas mídias sociais, nos sites de fofocas e que merece ser lida impressa no papel. Se este for seu álbum de despedida, o homem, sua obra e sua importância estarão todos representados de forma digna. Se não for, torcemos para que ele receba todas as homenagens e reconhecimentos em vida, contrariando esta irritante tendência de valorizarmos os mortos. Cohen está vivo, apesar dos pesares, produzindo grande arte. Sorte nossa.

(You Want It Darker em uma música: You Want It Darker)

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.