O exercício da composição é também de reflexão, e Lício sabe disso mais do ninguém. Com lançamentos tímidos, porém extremamente tocantes, o músico mostrou que seu violão era mais do que um amigo, revelando ser parte integrante de sua vida, quase como um órgão de seu corpo. Agora, com o lançamento de seu primeiro disco, isto parece ficar mais claro e a relação quase simbiótica com o instrumento de cordas se revela tão plena quanto complexa. O trabalho autointitulado se comporta como um álbum de registros bem guardados, o que deixa bem claro a razão de ser “gravado no armário embutido do quarto de empregada”, como dito em seu Soundcloud.
Com faixas arranjadas para voz e violão, estes elementos se mostram mais do que suficientes para que Lício encare e reflita sobre o próprio cotidiano, nos entregando, assim, uma crônica sincera. O dia-a-dia de Lício está permeando os intervalos dos acordes de violão e a voz falha do músico e, por cima disso, uma letra que encontra no mundano a poesia pura. À Árvore, por exemplo, entoa com um grave confortante a descrição de uma casa, ao mesmo tempo que tece comentários sobre uma relação.
O Espelho Vazio, por sua vez, dedilha nota tensas e melancólicas com uma melodia de voz rouca que traduz certo pesar e dureza, revelando a parte sofrível de cada cotidiano. A tristeza também continua em Neptunia a Vila Verde, que usa da sonoplastia de cachorros latindo e carteiros anunciando a chegada para compor a paisagem introspectiva. O disco conta com duas participações da cantora Daíra: Menina Fará e O Galo Inácio, ambas ótimos exemplos de como Lício é um ótimo anfitrião e faz sua convidada se sentir à vontade em meio a composições suas, mas que parecem ter igual validade e peso para a cantora.
O trabalho de Lício é impecável porque faz com que ele se proponha a explorar ainda mais um terreno que já conhece, revelando rachaduras, imperfeições e novos padrões. Estas novidades encantam o músico e é aí que jaz a matéria prima de Lício: a novidade do cotidiano e as incríveis surpresas que ele pode nos render. Um trabalho de mil sinceridades.
(Lício em uma faixa: À Árvore)