Parece que faz pouco tempo que o mundo descobriu que a América Latina é mais do que uma sombra da – autointitulada – América. A recente popularização em massa de gêneros musicais latinos trouxe um maior reconhecimento histórico e ter artistas do continente ocupando os primeiros lugares nas paradas musicais certamente contribuiu para esta propagação mundial. Entretanto, existe o outro lado dessa faca de dois gumes.
A partir do momento em que o Reggaeton explode mundialmente, há uma tendência reducionista de se referir a isso como “música latina”, uma espécie de nova etiqueta genérica tal qual foi a World Music ou o gênero Ethnic. Nessa perspectiva generalista, surgem várias injustiças e sobreposições, retomando aquele pensamento (se é que ele foi embora algum dia) da América latina como um estereótipo, ou o entretenimento turístico dos Estados Unidos. Essa é a ideia que a artista afrocolombiana Lido Pimienta procura combater de forma agressiva e maravilhosa em sua obra.
Lido internaliza essa luta há quase 10 anos trabalhando como artista independente. Residente no Canadá desde 2005, ela lançou seu primeiro disco La Papessa (2016) como uma reunião de vivências e confrontos. Além disso, sua visão lhe permitiu colaborar com outros artistas como Leonard Cohen, BADBADNOTGOOD e Feist. Agora, assinada sob o selo ANTI-, Lido lança seu segundo disco, Miss Colombia, um passo ainda mais fundo e elaborado dentro da mensagem que procura passar em suas composições. Temas como raça, a vivência indígena, feminilidade e o confronto de culturas são marcas muito claras em suas letras. Mas parte da potência com a qual Lido se comunica vem também da estruturação sonora e de escolhas estéticas durante a reprodução do disco.
É claro que Lido integra muitos gêneros da música latina a sua sonoridade, como Cumbia, Reggaeton e Bullerengue. Mas sua construção se sustenta na colagem de diferentes facetas a gêneros que comumente entram no balaio do “Pop Mundial”. EDM, Hip Hop e Trap ganham espaço e, neste ato, é como se Lido colocasse explosivos nos muros de Trump. Não na perspectiva Miss Universo de “unir todas as culturas”, mas demonstrando o poder de figura central de sua própria história, sem apelar para tendências. Quando apontada como um nome forte da “Nova Cumbia”, Lido admitiu querer se livrar dessa espécie de estigma, comentando “eu quero fazer um álbum que seja ótimo. Posso fazer isso?” Assim, a figura da Miss Colômbia expressa no título do disco reforça esta ideia: a do protagonismo perante suas vivências. Protagonismo que, segundo a artista, vem simbolizado na capa como uma referência à Virgem Maria.
“Para Transcribir (SOL)” abre o manifesto de Lido, dando total abertura para que apenas sua voz seja ouvida, em melodia igualmente bela e forte. “Nada”, parceria com a Li Saumet (Bomba Estéreo), traz uma forte percussão da Cumbia intercalada por interferências da música eletrônica. “No Pude” se utiliza de baixos pesadíssimos e o vocal suave para sustentar um estado de transe no ouvinte. “Quiero Que Me Salves” se escora em percussões e vozes do Sexteto Tabala, além de um prelúdio que conta com a fala do integrante Rafael Cassiani sobre a história do grupo, ressaltando o orgulho colombiano de Lido. Como um ciclo, o disco se encerra com “Para Transcribir (LUNA)” que, diferente da primeira faixa, conta com várias vozes, tornando seu discurso, antes singular, em algo plural e, se é que é possível, ainda mais poderoso.
Miss Colombia repensa o estereótipo e aprofunda a luta por meio da arte. Para isso, Lido traz temas que não são facilmente digeríveis, cuja exposição crua é imprescindível para transmitir a mensagem. Entretanto, não é trabalho de Lido facilitar as coisas para o ouvinte. Isso seria pouco incoerente com a força de trabalho. Juntando referências belas e exemplares, Lido Pimienta faz jus a sonhos de sua família, como revelou em entrevista recente: “O sonho de minha mãe, que eu me tornasse uma linda mulher, está se tornando verdade”.
(Miss Colombia em uma faixa: “Nada”)