Aos 20 anos de idade, Lucy Dacus não teve tempo para pensar ativamente sobre a própria carreira musical. Logo no lançamento do primeiro single, “I Don’t Wanna Be Funny Anymore”, feito pela pequena gravadora de Virgínia EggHunt Records, em 2015, a cantora e compositora foi surpreendida — e atormentada — por e-mails de gravadoras e personalidades da indústria fonográfica. O registro, que antecipou o grandioso disco de estreia, No Burden, rendeu mais de 20 propostas de contrato. A Matador Records, contudo, acabou vencendo a corrida pela nova ascensão do Indie Rock.
O primeiro álbum, gravado despretensiosamente entre amigos como parte de um trabalho da faculdade do guitarrista Jacob Blizard — na banda de Dacus até hoje —, abriu as portas para que ela se dedicasse efetivamente à jornada artística. Na sequência de No Burdern (2016), vieram Historian (2018), a colaboração de peso com Phoebe Bridgers e Julien Baker no Boygenius e um aumento exponencial das atenções voltadas à cantora. Tudo o que nos leva ao terceiro disco de estúdio Home Video, lançado no último dia 25 de junho, pela Matador Records.
Altamente autobiográfico, Home Video é a passagem de ida e volta de Dacus às ruas de sua cidade natal em Richmond, na Virginia. Literalmente. Após uma série de turnês, a artista viajou para a casa dos pais a fim de se reconectar com as próprias origens e acabou revisitando uma série de memórias, dos sete aos 17 anos, contidas nos diários que escreveu e nos filmes caseiros produzidos pelos pais adotivos.
Melancólica e nostálgica, Dacus nos entregou trechos dos (micros) curtas-metragens que viveu, ao longo das 11 faixas. Temas como primeiros amores, pais super protetores, entendimento da própria bissexualidade e, em especial, a infância meticulosamente religiosa aparecem no registro — porém, sob o olhar de uma mulher tratando questões com as quais ela não podia lidar tão bem sendo uma criança. É o que ela nos adianta em “Hot and Heavy”, faixa de abertura e um dos singles promocionais do novo registro: “Estar de volta aqui me deixa com o rosto quente / Sangue quente em minhas veias pulsantes / Lembranças pesando em meu cérebro / Quente e pesado no porão da casa dos seus pais”.
Nessa coleção de memórias íntimas, a artista discorre sobre suas frustrações e pensamentos obscuros — agora, exclamados em “Thumbs”: “Eu poderia matá-lo, se você deixasse”, sobre o pai ausente de uma amiga. Além dos episódios da infância religiosa, como narra em “VBS” (Vacation Bible School), que significa “Escola Bíblica de Férias”, em português.
A faixa, que inicialmente parece entusiasmada com acordes constantes e vocal sereno, cai em um estrondo de guitarra enquanto ela canta: “O escuro parece mais escuro do que antes”, após descrever momentos que vivenciou no acampamento cristão: “No verão de 2007, eu tinha certeza de que iria para o céu”. Esse imaginário endeusado presente na composição também dá liga ao conceito do disco, quando percebemos que a contracapa do registro é uma fotografia da artista, aos dois anos de idade, rezando para sua própria boneca.
Cheio de confissões adolescentes e como quem “fala baixinho para não zangar a Deus”, Home Video é uma continuação graciosa do trabalho como compositora feito por Dacus até agora. Às vezes irônica, cínica, mas também assertiva, a cantora sabe contar histórias tão bem quanto suas parceiras de boygenius, que, inclusive, chegam com backing vocals muito bem-vindos pelo repertório. A longa e excitante “Tripe Dog Dare”, que encerra Home Video, comprova ainda mais que Dacus divide o mesmo patamar com suas amigas.
Lucy Dacus embala suas histórias com pianos suaves, guitarras singelas — ao contrário do disco de estreia e mais próximo da atmosfera de “Night Shift” e Historian —, ondulações dramáticas, violinos e um Mellotron. Mixado em parceria com Shawn Everett, que já colaborou com Haim, The Killers e Weezer, Home Video cativa pelo entendimento profundo da artista a respeito de si mesma. E consolida uma persona que nos hipnotizou desde o primeiro power chord de “I Don’t Wanna Be Funny Anymore”, seu single de estreia, lançado em 2016. Agora que Dacus fez as pases com o passado, o futuro parece ainda mais promissor.
(Home Video em uma faixa: “VBS”)