Resenhas

Luedji Luna – Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água

Com lirismo afiado e musicalidade rica, segundo disco alia o contemporâneo e o clássico e é um dos grandes lançamentos do ano

Loading

Ano: 2021
Selo: Independente
# Faixas: 12
Estilos: MPB, Jazz, Indie
Duração: 49'
Produção: Luedji Luna e Kato Change

Há algo muito clássico na maneira com que Luedji Luna nos entrega Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água quando notamos que é um disco no qual ela canta sobre aquilo que está no seu coração, apoiada por uma banda. Ao mesmo tempo, a obra se mostra bastante contemporânea ao trazer, em igual volume, aquilo que a artista também pensa, além do sentir, principalmente no que diz respeito à sua existência enquanto mulher preta no mundo como o conhecemos.

Impressiona de imediato o quão refinado é o som deste seu segundo álbum, que mira em como a música africana tem se desenvolvido na atualidade, em contraponto ao que Luedji propôs em Um Corpo no Mundo (2017) – seu disco de estreia investigava a herança da música vinda da África ao longo do chamado Atlântico Negro. Gravado no Quênia com Kato Change como coprodutor, o novo trabalho bebe do encontro entre os sons do continente e as influências do Jazz. Trabalhada a percussão tão referencial da produção africana, ela explora agora um território contemporâneo e cosmopolita.

A própria figura da artista enquanto coprodutora da obra também evoca a contemporaneidade. Ao invés de ocupar apenas o lugar de “diva” que canta suas emoções e encanta com a beleza de sua voz, Luedji se coloca como uma criadora pensante, uma tomadora de decisões que artesanalmente monta o disco com suas escolhas. Isso se percebe nas relações de clímax e anticlímax que algumas faixas trazem, como as repetições em “Chororô”, ou com as elipses no arranjo que acompanha a letra de “Tirania”, ou ainda no piano cheio de classe que contrasta com a sinceridade crua dos versos de “Recado”. Ele ganha o primeiro plano logo após ela cantar “Vou pensar em mim / Sem querеr fugir / Sem querer morrеr / Sem querer matar”.

Em paralelo às escolhas de produção que dialogam tão bem com o canto, há também o que está sendo dito. A mensagem dá um passo à frente do que Luedji começou em Um Corpo no Mundo e mostra um lirismo mais direto na escolha de palavras ao narrar seus acontecimentos. Se antes ela ia “andando pelo mundo como posso” (em “Acalanto), agora canta sobre “não lavar o prato, nem procurar ninguém” (novamente em “Recado”). Mais confiante de si mesma, ela também comunica mais sobre como é habitar um lugar na sociedade enquanto mulher e preta.

Para isso, resgata a clássica “Ain’t Got No”, da eterna Nina Simone, e se inspira no famoso discurso “Ain’t I a Woman?”, feito em 1851 pela abolicionista norte-americana Sojourner Truth. Empoderada por essas mulheres de gerações passadas, Luedji canta “Eu sou a preta que tu come e não assume” (na música também chamada “Ain’t I a Woman?”) e toma as rédeas da própria sexualidade ao falar de seu desejo (em “Origami” e “Erro”, por exemplo). Com as presenças de Conceição Evaristo e Tatiana Nascimento recitando poemas, Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água ganha mais vozes pretas que reforçam essa mensagem.

É um trabalho superior ao já ótimo disco anterior, com músicas e entrelinhas que revelam o quanto Luedji amadureceu em cada aspecto de sua criação. Seja pela dinâmica dos versos que ora confessam, ora sugerem, pelo calor da banda ao vivo na gravação ou pela enorme beleza resultante da soma de seus elementos, é uma obra que coleciona boas escolhas e está pronta para receber o status de um dos grandes destaques desta temporada.

(Bom Mesmo É Estar Debaixo D’Água em uma faixa: “Ain’t I a Woman?”)

Loading

ARTISTA: Luedji Luna

Autor:

Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.