Resenhas

Maria Bethânia – Noturno

Novo disco da cantora baiana retoma a noite enquanto tema e encontra luz no outro lado da escuridão

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Ano: 2021
Selo: Biscoito Fino
# Faixas: 12
Estilos: MPB, Samba, Bolero, Rock, Pagode, Flamenco
Duração: 37'
Produção: Jorge Helder, Letieres Leite

Lembra de quando podíamos sentar em paz em uma mesa de bar e sobre ela, acompanhados por copos de cerveja e doses de cachaça, deixarmos as agruras da vida, as pedras no caminho? Imagina essa cena, mas quem senta ao seu lado no boteco é uma senhora geminiana que, no alto de seus 75 anos de idade, conta como a noite a atravessou durante a vida e ainda a atravessa. É evocando essa circunstância (que, em tempos pandêmicos, chega com uma amarga nostalgia) que Maria Bethânia abre o seu mais novo disco, Noturno, com a faixa “Bar da Noite”, de Bidu Reis e Haroldo Barbosa, composta em 1953.

Enquanto intérprete, Maria Bethânia, para além de seu talento vocal inquestionável, sempre teve (e ainda tem) uma veia forte para a curadoria musical de seus discos. Ela escolhe canções para um disco como quem escreve versos para um poema. “Bar da Noite”, portanto, é uma abertura melancólica e minimalista (voz e piano, apenas) de um registro cujo intuito é perscrutar a escuridão da perspectiva de alguém que a conhece de perto. E, mais, sabe onde encontrar a luz no breu.

A segunda faixa, por sua vez, é a inédita do disco. Estendendo a mão e apostando em seu sobrinho Zeca Veloso como compositor, a cantora o coloca em seu disco ciceroneado por nomes consagrados como os de Chico César e Adriana Calcanhotto. Um privilégio raro para quem está dando seus primeiros passos na música. Em “O Sopro do Fole”, por sobre um modão, Zeca fala de um tipo de escuridão oriunda do deslocamento. Experiência fundamental da migração Nordeste-Sudeste, essa falta de encaixe encontra tradução sensível e generosa nas palavras do filho de Caetano Veloso e leitura apaixonada, saudosa e nostálgica na voz da tia dele.

Em “Lapa Santa”, a música seguinte, de Paulo Dáfilin e Roque Ferreira, Bethânia volta os olhos para a fé vivida em conjunto: a romaria, a procissão, o terreiro… É a cidade de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, que ganha homenagem nessa canção que parece, em cima de um arranjo de cordas rítmico e intenso, retomar o poder do divino como eixo de sustentação do indivíduo perdido no mundo, tentando reencontrar o seu caminho, seguir a vida. Paulo Dáfilin, inclusive, segue como autor da próxima faixa, “De Onde Eu Vim” e, nessa, aproveita a oportunidade para aprofundar-se na história ensaiada em “Lapa Santa”. Aqui, contudo, o samba em sua face mais alegre é que contorna as palavras entoadas por Bethânia: “Um suspiro de saudade / Solto pelo ar”.

Na quinta canção, uma nova fase do disco parece se abrir. Novamente, entra em cena o combo minimalista de voz e piano. As palavras e a melodia, no entanto, ganham a assinatura de Adriana Calcanhotto. “A Flor Encarnada” tem atmosfera sombria e, em sua sutileza, reconhece a sensibilidade humana que passa a ser incontornável nos momentos em que a alma é esmagada pela experiência vivida. O cenário, como o próprio disco, é duro, mas a resolução pode ser libertadora. Porque onde sobra somente “eu e meus breus”, o que se pode fazer com isso? “Vidalita”, na sequência, suscita a mesma questão soturna. A versão de Bethânia para o flamenco de Mayte Martín (nome artístico da catalã Maria Teresa Martín Cadierno) nega os componentes regionais do estilo musical para criar uma releitura respeitosa e verdadeira da angústia estampada na letra em espanhol.

Uma resposta para a pergunta se ensaia em “Prudência”, de Tim Bernardes. A canção composta pelo vocalista do paulistano O Terno é um bolero com perfume cafajeste. A cafajestagem, entretanto, nesse contexto, empresta para a pergunta ontológica “o que fazer com a condição inerente à vida de sofrimento crônico” uma saída egóica, mas importante. Em geral recusado pela nossa sociedade falsamente altruísta, falsamente empática, o egoísmo aqui é celebrado como tomada de consciência ao invés de escondido e calcificado como narcisismo. Um lembrete seminal para o mundo digital, das redes sociais, dos avatares idealizados. Isso posto, é somente depois do abraço no ego que se revela a posição mais verdadeira e mais honesta do amor. “Música, Música” fala sobre isso. O amor se reacende na voz da cantora que liberta a tal palavra de sua garganta com cada vez mais intensidade na canção de Roque Ferreira com violão de João Camarero.

Depois, “Cria da Comunidade”, de Serginho Meriti e Xande de Pilares (o segundo também canta ao lado de Bethânia nesta faixa), lança mão do Pagode para pautar o orgulho de ser quem se é, de vir de onde se vem. É sobre esse pilar, inclusive, que aparece a segunda música de Adriana Calcanhotto, “Dois de Junho”, em que ela retoma o absurdo da morte de Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos. Mais uma vez, a luz e a força de saber suas origens em contraponto à luta contra a escuridão, a ignorância, a violência, a injustiça.

Por fim, “Luminosidade”, de Chico César, começa o desfecho do LP ressaltando a oportunidade e a capacidade humana de, ainda que no meio do horror, encontrar alguma esperança, assegurar-se de alguma fé, aproximar-se de algo como o amor. É aí que finda-se o álbum com Bethânia recitando um trecho de Jorge de Sena, poeta português. Completa-se o convite a enxergar “a luz no meio de nós / Não na distância / Aqui no meio de nós / Brilha”.

Não há como negar: Noturno é brilhante.

(Noturno em uma faixa: “Luminosidade”)

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