Resenhas

Medhane – Cold Water

No terceiro disco da carreira em apenas seis meses, nova-iorquino sintetiza a superação de suas dificuldades em raps transparentes e cativantes

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Ano: 2020
Selo: Independente
# Faixas: 15
Estilos: Rap underground, Lo-Fi
Duração: 35'
Produção: AFB, Chuck Strangers, Navy Blue, Ohbliv e outros

Inspirado no calendário de Future, que soltou uma trinca de mixtapes entre outubro de 2014 e Março de 2015, Medhane lançou a terceira parte de projetos que inauguram sua carreira. Cold Water (2020), o último lançamento, vem seguido da mixtape FULL CIRCLE (2020) e de Own Pace (2019), efetivamente, seu álbum de estreia. Em apenas seis meses, o rapper nativo de Crown Heights, no Brooklyn, já engatou uma jornada que, para dizer o mínimo, é promissora. Com olhar cuidadoso sobre o próprio trabalho e capaz de universalizar dificuldades particulares, Medhane continua a apresentar projetos cheios de personalidade e, por isso, tão cativantes.

A forma introvertida e direta de abordar temas como depressão, cicatrizes e traumas se mostrou uma característica notável na arte do rapper de 23 anos, que relata conflitos internos e externos vivenciados nas tentativas de desenrolar os emaranhados da própria mente. Mas, antes de tudo, sua mensagem sempre passa pela perseverança. As composições falam muito sobre busca: de paz, de verdade, de tranquilidade. Cold Water nos revela a densidade desse sentimento. Medhane agora sabe para onde direcionar sua perseverança e aprendeu a “deixar ir”, como a água gelada segue o fluxo do rio. “Learned to let go, let it be”, ele professa na última faixa, “On Me/You”.

O progresso do artista na abordagem dos temas é acompanhado de aperfeiçoamento nas rimas. Neste lançamento, ele consegue dizer mais coisas com menos palavras – e o poder de síntese é um dos sinais mais significativos de aprendizado. Faixas como “Truth & Soul” (o Yin da Yang “Trauma & Grace, de Own Pace) e a intro “Off Tha Strenght” mostram a habilidade do rapper em rimas internas, assonâncias e figuras de linguagem. “Awake for days / Moving thru the maze / Stargaze / Scarred frame / Working till we saw change / Short days / I could feel the floor shake / To faith”.

O foco nas descobertas pessoais não o impede de adereçar temas externos como encarceramento em massa e violência policial, que também são causadores de depressão entre pessoas pretas. No entanto, esses temas servem como pano de fundo para que outras questões sejam debatidas e expressas por Medhane agora. Linhas como “Strong mind, strong body, calm spirit / Ancestors talk to me and I listen” e “Heaven reach Medhane every time / Me, Mike, Navy, Nate, Maassai”, além dos agradecimentos a conselhos de mãe e de avó, atestam que a ancestralidade e estar próximo a um círculo verdadeiro de amigos foram fundamentais para o processo de melhoria da saúde mental do rapper. Como um lembrete de que ele não passa por isso desassistido e um chamado para mostrar o que veio fazer por meio de sua música.

Após produzir todos os beats de FULL CIRCLE sob a alcunha de AFB – apelido dado pelo parceiro musical MIKE –, Medhane, dessa vez, conta com uma poderosa equipe beatmakers para o seu melhor disco em termos de produção até o momento. Nomes como Ohbliv, Alexander Spit, Chuck Strangers, Navy Blue, além de colaboradores frequentes como Bori, iblss, and Stoney engrossam o caldo de Cold Water – uma integração de todas as partes que Medhane identifica e desfragmenta de si durante a trilogia de trabalhos. De beats quebrados de “No Cap” a loops sem bateria em “TRS”, a sensação é de água gelada de cachoeira batendo nas costas, nas pedras e correndo rio abaixo. Sempre com essa textura granulada, a descrição precisa de seus processos desfazem a névoa que permeia os beats mais soturnos e carregados do início do trabalho. O destaque vai para “All Facts”, que remete a algo como uma colaboração entre Gorillaz e Griselda Records e marca um ponto de virada importante no disco; e o soul-jazz – presente em todo o trabalho – da excelente “Na Fr”.

Jadasea, KeyiaA (que também lançou um excelente trabalho este ano!) e Maxo completam o time nas participações. O último aparece com um ótimo verso em “Bun Down Babylon”. A faixa, uma das melhores do projeto, resgata a perseverança de forma mais energética e exibe com orgulho tudo o que Med passou – e as pazes que fez com seu próprio tempo.

Medhane constantemente se permite lembrar que, apesar de todos os problemas, ele ainda continua a existir e a ter orgulho de quem é da forma mais leve possível. “Now it’s lookin’ better/  Since I picked the pen up”, afirma em “Live!”, denotando o aspecto terapêutico de seus raps. O álbum mais recente do rapper é, com certeza, uma lembrança para si mesmo sobre superação e “deixar ir”, mas também um farol que dá esperança e direção a quem possa vir a trilhar esse caminho.

(Cold Water em uma faixa: “Full Hands”)

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ARTISTA: Medhane