No início da década de 1970, a multi-instrumentista Alice Coltrane marca um ponto de virada em sua carreira (e vida). Quando seu marido, o lendário John Coltrane, faleceu precocemente aos 40 anos em julho de 1967, o casal vivia o amor supremo: tinham três filhos, compartilhavam de uma espiritualidade profunda, com imenso interesse na filosofia indiana e haviam tocado juntos em diversos projetos. Ainda assim, Alice era com frequência referenciada – injustamente – apenas como a viúva de John, mais do que a competente música que já havia se provado. Para superar o luto, Alice Coltrane usou a música: aliado ao auxílio espiritual de Swami Satchidananda (líder religioso indiano), ela adicionou a harpa encomendada por seu marido antes de morrer como instrumento pivô em suas criações. Com discos como Universal Consciousness (1971) ela propôs uma nova ciência de arranjos e temas, dando início a uma jornada própria, se consolidando tão ímpar quanto o marido.
Assim como a história de Alice, que muitas vezes foi relegada à posição de “esposa de John Coltrane”, a história de outras mulheres negras com frequência é menos apreciada do que deveria — e Melanie Charles está disposta a questionar isso. Em seu disco de estreia, a artista de 34 anos, filha de haitianos e natural do Brooklyn, em Nova York, faz o movimento ousado de dedicar o seu primeiro trabalho por uma gravadora a reimaginar canções clássicas de mulheres negras do Jazz. Com o lema de “Make Jazz Trill Again”, algo como “Faça o Jazz do Povo Novamente”, Charles traz perspectivas atualizadas, eletrônicas e até mesmo dançantes de músicas de Ella Fitzgerald, Billie Holliday, Betty Carter e outras.
Nos anos recentes, Melanie Charles tem conseguido dar grandes passos na carreira. Combinando o Jazz com doses precisas de R&B contemporâneo e Soul, seu estilo tem sido incorporado por um interessante leque de artistas, que vai de SZA ao rapper Mach-Hommy, passando por Gorillaz. Este ano, a artista também participou do Tiny Desk (At Home) da NPR, e manteve a ousadia característica: apresentou a autoral “Dillema”, homenageou Sun-Ra – a quem ela se refere como um Deus – realizando sua releitura de “Deep River” e “Damballa Wedo”, uma canção vodu tradicional do Haiti por Toto Bissainthe.
Reimaginar canções de gigantes do Jazz é uma tarefa naturalmente arriscada. No entanto, com notável autoconsciência e uma pitada de humildade, Melanie Charles entende os desafios e oferece um novo respiro a clássicos, fazendo de Yall Don’t (Really) Care About Black Women (2021) um projeto capaz de apresentar esses nomes a uma nova audiência. Em “Woman of the Ghetto”, releitura da música de Marlena Shaw, Charles reflete sobre os efeitos da brutalidade policial na comunidade negra, especialmente nas mulheres. Com a adição das harpas de Brandee Younger, a faixa ganha texturas melódicas que ilustram a ingrata resiliência necessária em determinados momentos da luta.
No canto, o disco de estreia de Melanie Charles é fortemente influenciado por Billie Holiday (“God Bless The Child”) e Sarah Vaughn (“Detour Ahead – Reimagined”). Na homenagem para a segunda, a faixa abre com um sample de um minuto de uma versão ao vivo do som original antes de ser invadida por synths e lúdicas percussões que fazem uma potente transição para a versão de Melanie. Enquanto isso, “Pay Black Woman Interlude” mescla arranjos de Jazz tradicionais com spoken-word, lembrando skits em álbuns de Rap. São alguns dos melhores sons do passado misturados a sons do presente, forjando uma saborosa fusão experimental. As faixas juntas não compõem uma unidade narrativa, mas isso não compromete a audição, uma vez que se compreende a proposta do disco — como se cada música fosse um portal para um determinado ano, uma determinada época.
Yall Don’t (Really) Care About Black Women é uma verdadeira carta de amor ao trabalho por muitas vezes desconhecido de mulheres negras. Melanie Charles nos leva em uma jornada que incorpora a alma do Jazz — a exploração —, e pede que os ouvintes deem os méritos merecidos a essas artistas. Seu primeiro disco de gravadora exibe extenso reportório e competência no ofício do Jazz, enquanto a cantora honra sua herança haitiana em combinação com o espiritualismo que o gênero permite, na busca de torná-lo trill novamente.
Em entrevista para a Downbeat, ela comentou: “Para mim, há tantos músicos que estão fazendo o que chamo de ‘jazz trill’ – meus contemporâneos como Kassa Overall, Theo Croker e Kamasi Washington […] Para mim,‘ trill jazz ’está enraizado no lema ‘by the people, for the people’. Mas também é onde os mais velhos e os jovens podem se conectar. É lindo que eu possa fazer uma música como ‘Skylark’, que minha mãe adora, mas posso fazê-la de uma forma que os jovens também vão se conectar. É um empurrão para a frente, ao mesmo tempo que reconhece o passado”.
(Yall Don’t (Really) Care About Black Women em uma faixa: “Women of The Ghetto”)