Resenhas

Mogwai – Rave Tapes

Mais uma vez, grupo escocês cria ficções sensorias com maestria através de músicas que tratam sentimentos de forma calada

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Ano: 2014
Selo: Rock Action
# Faixas: 10
Estilos: Post-Rock
Duração: 49:03
Nota: 4.0
Produção: Paul Savage

O principal elemento da música instrumental, a sua falta de letras, sempre me chamou muita atenção. Dentre os diversos aspectos e justificativas, o fato de uma música não ser composta primordiamelmente através de versos, mas de melodia, muda toda a relação que um músico tem com o seu ofício. Como afirmar um sentimento através de acordes, sem entrar no comodismo de uma letra que expresse tudo isso? Dentre as razões que às vezes nem o coração sabe explicar, a escolha de um nome de uma faixa traz outras interpretações e, em alguns casos, mais impacto para o que escutamos. Por exemplo, chamar uma canção de “amor” e cantar o tema ao longo de sua duração pode nos levar, no extremo, a somente recorrer a esta figura quando apreciamos a obra, podendo escapar para a cantoria ao invés de entender a melodia. Obviamente dentro de um espectro tão amplo de “instrumentais”, alguns grupos abraçam estilos, disseminam ideias e cultivam uma cena, sendo Mogwai um importante protagonista do Post-Rock sem voz.

“Sem voz” é relativo, dado que eventualmente conseguimos captar algum vocal saindo de suas produções. No entanto, todas as composições são baseadas no vazio que a falta de uma letra transmite ao ouvinte: sem este elemento, como podemos nos prender à faixa? A resposta reside na capacidade hipnótica do grupo em causar tensão, imersão e suspense, elementos fundamentais para conseguirmos nos conectar à música. Em seu oitavo disco, Rave Tapes, os escoceses criaram verdadeiros contos que vistos por cima são desconexos, mas quem à medida que nos aprofundamos, revelam uma conexão baseada em sua atmosfera – uma mistura de sintetizadores, melancolia e solidão.

Sempre podemos interpretar uma música à nossa maneira, mas não podemos negar que o seu nome importa. Heard About You Last Night surge no início do disco como um chamado sonhador. Seus versos melódicos vem e vão, o retorno é calmo após a explosão contida e sua melodia é semelhante ao pensamento relativo à alguém após este ser mencionado, como uma chave que é ligada e com ela ressurge uma imagem do passado, boa ou não. Estáticos, nos vemos pensando constantemente, imaginando as mais diversas possibilidades sobre este ser até então dormente. A conclusão dentre os mais diversos acordes é que a lembrança é triste, melancólica e ligada à quebra de um elo forte. Aliás, expectativa é o que não falta na ótima Remurdered, canção tensa e teatral. Perto de um neologismo à la Guimarães Rosa, o “reassassinado” é um conto sobre a sensação latente de que você irá morrer- de novo. O clima soturno composto por baixo sintetizado interage com a bateria no sentido de pergunta e resposta: a linha repetitida sofre a intervenção do instrumento rítmico como passos que seguem o protagonista – “o que está acontecendo?”. O refrão feito pela guitarra é mentiroso, expressa um desfecho que estamos somente aguardando. Seu final, épico, é precedido por um transição no sintetizador que muda totalmente a história. O climáx mostra-se invertido, enérgico e o fugitivo escapa de seu destino diante de uma batida viciante.

As guitarras, tão fundamentais ao desenvolvimento do grupo, não estão esquecidas. Aparecem de forma circular na letárgica Hexon Bogon, faixa que permite os famosos headbangs ao vazio que seus shows proporcionam. Sua bateria tribal é um chamado antropológico às origens do ouvinte e emanam figuras de grandes campos abertos sendo desbravados pelos nossos ancestrais. O escritor argentino Jorge Luís Borges escreveu uma história que se encaixaria muito bem como trilha-sonora para esta música: As Ruínas Circulares. A ferocidade tenaz de Simon Ferocious é interessante, mas perde-se diante de tantos bons momentos. Master Card é uma dessas viagens nas quais a interpretação da música é totalmente relativa ao seu nome. Expansiva em seus riffs poderosos, a música se assemelha ao movimento de placas tectônicas, fenômeno geológico normal e recorrente, mas que evoca a imagem de uma abertura ou ruptura no solo. Como se uma porta se abrisse, temos acesso ao desconhecido mesma possibilidade oferecida por um cartão supremo – com bandeira internacional de crédito.

Curiosamente, a voz surge mais do que o comum em Rave Tapes, três vezes para ser mais exato. O monológo feito por Lee Cohen em Repelish, abordando as mensagens subliminares por trás de Starway to Heaven do Led Zeppelin, faixa que mercantiliza a possibilidade de ir aos céus – “and she’s buying her starway to heaven” – é o mote para uma lisergia sem fim que chega até escutar as o disco ao contrário para ouvir “Satan”. A história traz de novo a tensão ao disco, não sabemos o que vai acontecer e a entonação de voz constante nos proporciona nada senão ansiedade. Blues Hour, música extremamente triste, é a única com uma estrutura comum. Com uma letra que acompanha o piano e se concentra na lamentanção, é o momento em que nos vemos desalecerando, tomando o tempo para pensar na vida e entender que a melancolia é normal e não deve ser interpretada como um estado perpétuo, mas transitivo. O final, The Lord is Out of Control, cantado junto ao vocoder, instrumento que muda a entonação vocálica criando um aspecto robótico, é maravilhoso. Como se Daft Punk tentasse falar mais sobre si mesmo, Mogwai se coloca entre máquinas para criar um momento carregado de sentimento e emoção.

Se não falassem nada, os músicos já estariam nos abrindo diversas possibilidades para que o ouvinte refletisse sobre si mesmo diante de faixas hipnóticas e usuais na carreira do grupo. Em pequenos contos, quase sempre melancólicos, a banda se coloca mais calma que em outros momentos, mas ainda sim se destaca e cria mais uma excelente obra. Em uma linha constante, os escoceses se colocaram em um patamar e não saem mais de lá criando trabalho após trabalho, com trilhas sonoras no meio, verdadeiras experiencias multisensoriais que podem ser completadas com outras mídias. Vale ressaltar aqui o elo brilhante entre a abertura, Heard About You Last Night, em que dizíamos que a imagem passada era de tristeza, com o melhor momento da obra, No Medicine for Regret. Sentimos a angústia aqui em cada acorde, vivenciamos a sensação do arrependimento, único sentimento que talvez não tenha cura, pois está atrelado diretamente as nossas ações. O que foi feito, está feito e não adianta pensar mais nisso, no entanto, nos punimos constantemente criando – mais uma vez- um universo de possibilidades a partir do “se” e Borges também abordou o tema em O Jardim das Veredas que se Bifurcam. O escutar na noite anterior é seguido do lamento do incompleto em uma união que somente um grupo tão lacônico mas sincero poderia fazer. Ao criar discos com títulos que não remetem em nada ao seu som, como o ótimo anterior Hardcore Will Never Die, But You Will, Rave Tapes é o remédio ao inconsciente e à reflexão, elementos que a música sem palavras pode sempre proporcionar.

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Autor:

Economista musical, viciado em games, filmes, astrofísica e arte em geral.